terça-feira, 13 de abril de 2010

Volto já

Prezados bons fregueses:

O blog se repousa temporariamente para balanço. Grata pela preferência e até a reabertura, com grande abraço.

domingo, 11 de abril de 2010

Sublime Swing




Improvisações divinas só podem ser assim chamadas porque irrepetíveis, únicas e fugazes.

Não se nasce músico com um passarinho na garganta e nem lhe basta o instinto para dividir uma improvisação rítmica como esta sem a pesada bagagem de muitos anos de estudos clássicos, como a de Bobby McFerrin. Não há partitura que o alcance.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Tulipas

Quem me dera

até para a flor no vaso

um dia chega a primavera
(Paulo Leminski - Hai-Kai)



"A admiração pelo gato é o início do senso estético." (Erasmus Darwin)

domingo, 28 de março de 2010

Goya e as dores do mundo

Goya, da série "As Dores do Mundo"
Não há como permanecer impassível diante da ferida aberta e lancinante das guerras retratada por Goya há 200 anos sem nos trazer de volta à estupidez humana da realidade imediata. Apenas em 2008, foram computados na triste estatística da ONU nove guerras e 130 conflitos no mundo. As lúgubres e cinzentas pinceladas de Goya não nos bastaram. Suas pinturas, porém, continuam a denunciar nossas brutalidades.

É com esta sensação - entre resignação e cumplicidade - que saí da mostra milanesa Goya e o Mundo Moderno, cujo fio condutor traz uma profunda análise da violência humana deixada por Goya como um atormentado legado aos pintores modernos. Sua obra é uma referência não apenas temática, mas também estilística, a delinear a arte dos séculos 19 e 20. É dela que se nutriram os impressionistas, expressionistas, simbolistas e surrealistas.

A mostra percorre cinco sessões da trajetória do artista ao lado de outros célebres. Como pintor iniciado nos ambientes da corte, se confronta com J.L. David, Delacroix e Soutine, para seguir a temática cotidiana ao lado de obras de Victor Hugo, Kirchner, Daumier e Grosz. Sucessivamente segue o tema Cômico e Grotesco, no qual Goya retrata os absurdos e ironias da vida moderna, que mais tarde, iluminarão as obras de Picasso, Miró e Klee.



Obra "Não somos os últimos", do pintor esloveno Zoran Music.
Mas é na penúltima e mais importante sessão, a da Violência, que encontramos o atormentado Goya, já na fase em que não apenas a invasão napoleônica como a doença da surdez progressiva o afligem. Aqui, dezenas de suas gravuras negras que retratam a série As Dores de Guerra, acompanham obras de Dalí, Music, Guttuso e Picasso. Deste último, não podia faltar a obra "A Mulher que Chora" e "Mulher com o Filho Morto".

A mostra fecha com a sessão batizada de O Grito, e não haveria tradução melhor para completar suas expressões. A partir da obra "Nada. Isso diz", os sujeitos já são deformados pelo terror e a dramaticidade é seguida por obras de Bacon, Pollock, Appel, Kiefer, Giacometti e Saura, - este, um contemporâneo de Ensor e Munch.

A mostra no Palazzo Reale de Milão prossegue até dia 27 de junho. Vê-lo isoladamente nos museus de Madrí, Zaragoza ou esparsos pelo mundo é sempre uma experiência valiosa. Mas vê-lo lado-a-lado com os pintores heredes de seus gritos o eco se faz mais forte.


quinta-feira, 25 de março de 2010

Dia da caça


Não pude evitar um meio-sorriso com esta notícia da BBC Brasil, sobre o incidente ocorrido no Parque Nacional de Kruger, na África do Sul.

Que venham mais dias da caça ao de caçador.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Visitantes de pena


Faz algumas semanas que acordo em plena madrugada, com cantos de pássaros que vieram viver ao lado da janela do meu quarto, onde uma imensa magnólia abriga todos os anos um alegre minicondomínio ornitológico.

Nada fora do calendário natural - já que a primavera começou oficialmente ontem - , nao fosse o insólito fato que começam a cantar já por volta de duas ou três da madrugada, um fenômeno jamais notado em anos anteriores. Serão vítimas do engano ótico, provocado por iluminações urbanas ou inusitadas mudanças climáticas a subverter a evolução e o ciclo natural destes insones.

Segundo uma rápida consulta no site da Liga Italiana de Proteção aos Pássaros, uma das mais combativas associações no campo ambiental junto ao Bird Life International Europe, algumas espécies diminuíram cerca de 40 a 60% do território nacional em apenas dez anos.

Eu mesma já os coloquei em risco anos atrás, ao colocar pedaços de maçã à beira da janela, com expectativa de atrair mais passarinhos ao minicondomínio, mas desistí rapidamente. Possuo uma guardiã felina que passa a inteira estação a fazer birdwatching por trás da janela. Com a janela devidamente fechada, espero atraí-los sem artifícios este ano. Apenas com o silêncio.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Pesos e medidas


Nada melhor que acordar e ler, logo de manhã, a sempre lúcida interpretação dos fatos como esta, de Hélio Schwartsman, colunista da Folha. Melhor que esta, só dois Schwartsmans. Não me ocorre acrescentar nem menos uma vírgula a este texto.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Ferlinghetti, tão longe, tão perto

Lawrence Ferlinghetti, escritor, editor, poeta e pintor

Não conheço San Francisco, infelizmente. Mas, se tivesse que atravessar o Atlântico para conhecer a cidade, certamente iria - quase exclusivamente - , para entrar na livraria e editora City Lights Bookstore, de Lawrence Ferlinghetti, poeta, editor e amigo de tantos escritores da beat generation que já se foram.

Neil Casssady e Jack Kerouac

Não fosse ele, não teríamos conhecido Kerouac, Ginsberg, Burroughs, Neil Cassady e tantos outros que fizeram sonhar a geração brasileira na primeira metade dos anos 80, com suas transgressões literárias, devoradas por nós como pipocas no cinema. Tempos em que - mesmo com algumas décadas de atraso com relação a outros países - , editoras como Brasiliense e L&PM presentearam o mercado editorial com a novidade literária e seus escritores colaterais - John Fante, J.D. Salinger, Bukowski, entre outros. Méritos então de Leminski, Pepe Escobar, Matinas Suzuki Jr, Claudio Willer e tantos outros tradutores e resenhadores da Folha.

San Francisco está longe para mim, mas Roma está próxima. O Museu de Roma, no bairro de Trastevere, está exibindo até o dia 25 de abril a mostra "Lawrence Ferlinghetti - 60 anos de Pintura", do editor que hoje está com mais de 90 anos de idade. Literatura e pintura sempre estiveram lado a lado para este remanescente -,talvez o último beatnik, ainda ativo.

Segundo as resenhas que li, a mostra traz pinceladas que começam com 1947, ano em que Marcel Duchamp e André Breton organizaram a Exposição Intermacional de Surrealismo, cujo estilo - com toque de Mirò e Tanguy - o influenciou nos primeiros traços, até chegar ao expressionismo onírico de Chagall.

Pessoalmente - se poderei ir até Roma pela mostra - , gostaria de ver a representação de "The Death of Neil Cassady", sobre a morte do escritor-símbolo da beat generation, co-protagonista e amigo de Kerouac no "On The Road".

Quem sabe, suas pinturas poderão me reacender como facho de transgressão estes tempos apáticos e ordinários.

sábado, 13 de março de 2010

A Voz


Como não sucumbir à voz entorpecente de Dinah Washington num sábado apático como este, sem evocar fortes emoções? Vale paralisar tudo para ouvi-la, aqui

sexta-feira, 12 de março de 2010

Pudim


Numa idade semicrepuscular - digo, "quase" a segunda idade, por não encontrar algum eufemismo - , a vaidade feminina não se apaga por completo. Rímel, batom, perfuminho de boa qualidade e até barriguinha "quase" lisa com o respiro contido são sempre válidos. As pequenas imperfeições a gente deixa pra lá. Mas não há como fechar os olhos para a gula. E todas as teorias anteriores vão por água abaixo.

Fiz esse pudim de leite condensado seguindo fielmente a receita que continha na lata, enquanto aguardo algum texto médio - vá lá, medíocre, que já está de bom tamanho - me venha em mente para publicá-lo decentemente neste blog, tomado neste momento pelo "branco total". Na falta de assunto, publico esta foto para quem queira prová-lo.

A minha gatinha, que gosta de doces, delicadamente refutou o convite dizendo que está em dieta. Cheirou, fingiu que parece bom e foi para a cestinha dormir. Como sou anticonsumista e não gosto de jogar nada fora, o pudim está aí. Servidos?

quinta-feira, 11 de março de 2010

Deu branco

Abrimos uma conta blog-trincheira para disparar contra os males do nosso mundinho, espairecer a cabeça ou jogar nosso milésimo de segundo de frustrações no etéreo de milhões de gigabytes, esperando que isso resolva nossos desencantos.

Mas há dias em que dá branco. Branco-Omo. Nem desencanto e nem euforia aplaca a apatia. Dias assim, melhor deixar algum texto válido para depois.

Acho que mergulhei demais no universo irlandês. Daqui a alguns dias passa.

domingo, 7 de março de 2010

Joyce e outros dublinenses


Será o forte vento que desnuda seus campos ou o frio que castiga a terra insular, mas o fato é que qualquer tentativa de descrever a fascinante Irlanda num único post encerraria uma imperdoável profanação à sua cultura.

E o que dizer dos literatos que nasceram neste berço maltratado pela natureza e por divisões políticas e religiosas, reduzidos nestes dois parágrafos e meio em meras ilustrações? A consciência não me permite fazê-lo, mas o tempo e o espaço são estes. Afinal, sua cultura produziu quatro prêmios Nobel de Literatura - William Butler Yeats, George Bernard Shaw, Samuel Beckett e Seamus Heaney - e outros tantos escritores como James Joyce, Oscar Wilde, Jonathan Swift, Bram Stoker, Sean O'Casey ou Oliver St John Gogarty numa imensa lista de nomes universalmente notos e menos notos.

Fica aqui apenas um banalizado registro digital destes últimos dias de inverno.
Estátua de Oscar Wilde no Merrion Square em Dublim, localizada em frente à própria residência, hoje ocupada pela Irish American University.

Ingresso de James Joyce Centre, onde viveu um extravagante professor de dança, Denis J. Maginn (citado como Maginni em Ulisses) que sedia mobiliários do escritor e fotos de personagens reais que o inspiraram nas citações da mesma obra.

Quarto de James Joyce, sempre no centro cultural acima.

Museu de Escritores de Dublim. Desnecessário citar a longa lista irlandesa.


Trinity College, fundado em 1592 por Elizabeth I, onde estudaram Samuel Beckett, Oscar Wilde, James Joyce, Bram Stoker, Jonathan Swift, entre outros.

Mural de grafite-protesto pelos direitos civis em Belfast, Irlanda do Norte. O conflito entre protestantes e católicos continua.


Penhascos de Moher no condado de Clare, na costa atlântica, se estendem por 8 quilômetros, cujo desfiladeiro mais alto mede 214 metros de altura.

Vilarejo de Doolin, no condado de Clare, na costa atlântica.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Anna "Veste Prada" Wintour



Às vésperas do grande circo milanês de Moda, que inicia depois de amanhã, Anna Wintour, a poderosa diretora-carrasco da Vogue America - aquela mesma entidade que veste Prada - foi categórica ao reconfirmar seu poder de decisão.

Sem se descompor do alto da sua poltrona no outro lado do oceano, ordenou a Câmara Nacional de Moda Italiana e suas centenas de indústrias do setor a "enxugar" com urgência o calendário semanal de desfiles. Numa decisão unilateral decidiu dedicar-se apenas três dias a Milão, rompendo compromissos já agendados ao longo da semana na maratona de desfiles. Os estilistas? Que se arranjem entre si para comprimir ou mudar a programação. Não conseguem? A inabalável Wintour não conhece piedade para pegar a estrada de volta para o aeroporto. Ineficiência e morosidade não entram no seu vocabulário.

Polêmicas de bastidores à parte, todos estão sucumbindo em silêncio, afinal. Por tabela, o batalhão de jornalistas e compradores internacionais que já está chegando à cidade terá que reajustar-se à nova ordem de Wintour. Terá que remarcar ou cancelar agendas que vão do hotel; horário de desfiles; entrevistas; pedidos e extenuantes deslocamentos de um evento a outro sem os saltos Jimmy Choo, mas um cômodo tênis Bamba.

O circo que vende sonhos e desejos garante o espetáculo apenas quando vende a própria alma ao Diabo de saia.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

A velha Telefunken



A velha Telefunken demorava a esquentar as válvulas, mas quando abria a janela para o mundo em preto e branco através da sua tela arredondada, nossos olhos brilhavam até mesmo nos comerciais. A impaciência não entrava nas nossas equações de tempo. Dos psicodélicos pernilongos da DDDrin a Ovomaltine; dos cigarros Peter Stuyvesant; desodorante Mistral e pãezinhos Seven Boys, tudo era apenas extensão do programa que aguardávamos ansiosos.

Comigo tudo começou com recordações nebulosas de National Kid, algo de Thunderbirds, Bat Masterson e os video-clipões dos Monkeys, uma espécie de clones dos Beach Boys, de cuja música "Daydream Believer "vai ecoar na minha memória até o dia do meu funeral.

Depois, vieram as séries em pacote semanal completo. Túnel do Tempo,Viagem ao Fundo do Mar, Perdidos no Espaço, Daniel Boone e a minha primeira paixão platônica, o belo John Boy dos Waltons - a família-modelo-moral-protestante-norte-americana - por quem cheguei a fantasiar coisas inenarráveis antes mesmo que os meus hormônios prematuros se manifestassem.

Belas lembranças que emergem nesta sexta-feira chuvosa, por conta de recomendação de uma amiga pela leitura do colunista Marcelo Coelho, da Folha, com estes lançamentos de DVDs nostálgicos .

E agora desligo a Telefunken, porque preciso trabalhar. Contudo, o pontinho branco que restará na tela nunca vai se apagar na minha memória.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

O parâmetro do bolso


Há pouco mais de um ano passei a cortar meus cabelos num salão chinês, a poucos metros de casa. Finalmente acertei quem fizesse bem o que aparentemente parece simples. Curtíssimos, mas cuidadosamente despenteados, como o look de quem vai trabalhar tal como se levanta de manhã, mas sem pijamas.

Por renovar o corte com frequência - por alguns milímetros de aparos - já estava aborrecida com salões italianos onde até então eu recorria. Pelo serviço minimalista - corte sem o xampu com o habitual mau humor italiano - eu pagava cerca de 40 euros e ainda saia de lá sem a convicção de que viera como pedido. Já o jovem chinês, com o corte perfeito, xampu e até massagem extra me cobra apenas 10 euros, uma diferença abissal nestes tempos de contenção.

De fato, o salão chinês é sempre cheio hoje, frequentado por clientes que até poucos anos atrás menosprezava os serviços prestados por estrangeiros. A realidade muda com grande velocidade, mas os velhos clichês são duros a morrer. Há quem ainda acredite que chinês seja definitiva e categoricamente prerrogativa de má qualidade, esquecendo-se que as histórias se alternam. O rádio transistor iniciado pela renomada Sony pode dizer algo à respeito.

No domingo, me encontrei com amigos que vivem fora de Milão, num pequeno vilarejo privilegiado de verde e montanhas. Para festejar, fomos a um restaurante muito frequentado na região por oferecer excelente cozinha italiana, à altura de muitos tradicionais centenários estrelados por Michelin. Seu proprietário e chef eram chineses.

Havia fila de espera na porta. Eu poderia prolongar este texto falando horas a fio sobre os males da globalização, mas ao pedir a conta neste restaurante, nossos bolsos sucumbiram e, acima de tudo, agradeceram.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Astúcia sem fronteira


Com um pouco de intuição e mímica, fui compreendida pelo motorista de táxi em Istambul, na Turquia, de que a corrida era de emergência. Por um repentino problema intestinal com a minha companhia de viagem - que mal conversava comigo para evitar riscos inúteis - todo minuto seria precioso para chegar ao conforto de quatro paredes do hotel.

Mas creio que eu tenha lhe pedido demais, ao suplicá-lo que fizesse o percurso mais breve e evitasse ruas congestionadas para chegar ao destino, pois fizera o exato contrário.

Certamente o motorista não previu que eu não fosse, digamos, uma autêntica "japonesa-turista-fácil-de-levar-na-conversa-e-enfiar-a-faca-por-alguns-yens-a-mais", mas uma brasileira com certo know-how em malandragem tropical. Durante o trajeto, deixou se enganar pelo meu resguardo e silêncio quase monástico, já que não costumo jogar conversa fora com motoristas. É meu meio preventivo para evitar simpatia gratuita paga com trapaças. Se sabe, os turistas japoneses são potenciais vítimas nesse tipo de malícias em qualquer parte do mundo.

De fato, o motorista pegou as ruas mais disparatadas e distantes da cidade. Ao chegar à porta do hotel, eu lhe estendí a nota de 50 liras turcas para as 48 da corrida, algo em torno de 25 euros. Ao pegar o dinheiro, o motorista simulou descaradamente incompreensão, afirmando que recebera 5 liras, e não 50, que escondera rápida e furtivamente entre o maço de notas prontas para o troco. Só percebí o embuste depois que lhe dei outras 50 liras com mil sorries. Só não previu que eu também possuísse vantagem redobrada em insubordinação e rebeldia, adquiridas ao longo dos anos de sobrevivência em meio a astúcia "à italiana".

Ao me recusar a devolução de 52 liras, me transformei numa rumorosa Anna Magnani do cinema italiano e o ameacei a altos decibéis a denunciá-lo à polícia, debatendo-me na poltrona. Surpreso com a reação da turista 'ingênua', o motorista me devolveu rapidamente o dinheiro, e com um sorriso irônico no canto dos lábios, me deixou afundando o pé no acelerador.

Relatei este fato porque no sábado passado, me vi protagonista de um replay do filme turco, aqui em Milão. Ao acompanhar uma cliente ao seu hotel - enquanto conversava com ela apenas em japonês durante o trajeto - , o motorista tentou percorrer por ruas mais estranhas, confiante de que eu fosse uma turista. Ao final da corrida, ainda fingiu que não dispunha de troco de 8 euros. Obviamente recorrí à minha já tarimbada porção Anna Magnani. De novo.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Lobos e "lobos"



Todas as manhãs, ao passar os olhos pelos jornais, me pego arquitetando uma fantasia quase infantil de desforra contra a barganha, clientelismo, fisiologismo e outros ismos que não acabam mais. O de possuir um hipotético poder de fulminá-los, quem sabe, com um eficiente raticida ou uma dolorosa armadilha de caça, até o extermínio total desses desqualificados humanos - reprovavelmente chamados "lobos".

Enquanto isso, esses belos exemplares reais de lobo estão merecendo atenção pelo justo e legítimo retorno. Segundo o jornal La Repúbblica esta manhã, os biólogos que os monitoram no Parque Nacional de Majella - situado na região central do país, em Abruzzo - podem respirar tranquilos pela espécie.

Quase dizimados no início dos anos 70 pela contínua disputa pelo habitat com o homem, os lobos entraram no programa de proteção que já dura 40 anos. O resultado é que se contabiliza hoje uma alcatéia dividida em 12 grupos, num total de 70 a 80 exemplares na região.

Demonizada ao longo de milênios por caçadores, pastores e até pela literatura popular, era hora que a espécie retomasse o seu devido lugar. O homem tem uma dívida moral impagável com estes belos animais.

Quanto a "lobos" de outra alcatéia, tudo indica que estão longe de extinção. Aliás, festejam a multiplicação contínua.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Brasileiro


Minha amiga acaba de me mandar um e-mail no qual conta, entre outras coisas, de que vira num noticiário sobre inundações que afligem o Brasil, um sujeito que andava em meio a rua alagada em bicicleta de circo, aquela com rodas e selim altos para não se molhar.

Não entrou em detalhe e nem me ilustrou a situação, mas fiquei imaginando a cena galhofa desse sujeito, um representante do inesgotável senso de ironia e humor que caracteriza o país até em situações limites. Não resisti rascunhar um pouco de pseudo-sociologia de escrivaninha sobre o ser brasileiro.

Temos uma vocação ilimitada - uma patologia congênita, quase - para ser indulgentes com os poderes. Poderes de todos os números, gêneros e graus. Protestamos e esperneamos publicamente contra o estado das coisas. Mas apenas na mesa de bar. A dialética do direito, dever e cidadania se inflama apenas naquele estreito espaço entre o balcão e a mesa de PVC. Um cantinho onde cada um defende teses salvacionistas - alguns buscam teorias nos gregos, outros até na vitória do Corinthians - por um país livre de corrupção, impunidade e políticos com cuecas e meias cheias de dinheiro.

Quando esvazia-se a garrafa e é hora de voltar para a casa, o entusiasmo por um país melhor retoma a apatia. A resignação só não cai por terra ao encontrar por acaso o Alvinho, primo de um assessor de um deputado, de cujo partido pouco se lembra, que lhe confidencia que "o homem vai chegar lá, e quando ocupar a poltrona, te dou um toque por aquela vaga".

O crime da elite política discutido minutos antes na mesa passa então a ter uma conotação mais branda. O dinheiro na meia passa a ser uma involuntária fraqueza humana e a visão da corrupção se converte em contravenção, um cartão-amarelo, já que promessas para escalar a pirâmide o torna cúmplice dos mesmos males.

A indulgência brasileira nasce nessa barganha. Há aqueles que, distante dos bares, acreditam fazer parte da outra margem do rio, os que direta ou indiretamente supõem ter afinidade com o poder. Se não é um cunhado assessor de um deputado que conta, há um primo que trabalha no Tribunal ou na Receita a dar aquele jeitinho, de colocá-los no contingente intermediário entre o cidadão comum e o poder estratosférico de Brasília.

O emaranhado de influências e cumplicidade nessa massa intermediária jamais poderia render protestos. É que espera-se sempre que os outros o façam. "Outros" é um cômodo eufemismo para tolos e honestos, já que o pobre nunca foi sinônimo ou prerrogativa de integridade. O pobre só é assim chamado - no sentido brasileiro da palavra - o sujeito que ainda não agarrou o primeiro gancho para uma boquinha e apenas porque deve escalar mais níveis "para chegar lá". Mas o fará, se houver oportunidades. A prova disso é que o cafezinho para o guarda de trânsito é garantido por toda a sociedade. Em maior ou menor escala, todos subvencionam a mutreta no país.

Nunca a metáfora do Brasil caiu tão bem quanto o sujeito sobre a bicicleta de circo para não se molhar. Na ausência do Estado, o exasperado pedala como pode.

A gente somos inútil. Ainda.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

O tempo e o mouse



Passei ontem a inteira manhã imersa no meu arquivo morto - coisas do final dos anos 80 para cá - a procurar dados de um antigo contato de trabalho. Em meio a pilhas e pilhas de correspondências, faxes e rabiscos amarelados.

Folhear o registro daquele período precedente a internet parece paradoxalmente remoto e extemporâneo. Ao contrário da velocidade do mouse, a busca requer o manuseio, folha por folha. Cansativo e entediante, se devo confessar. No entanto, o passado é fisicamente tangível, graças a esses papéis, um registro profissional de sangue, suor e vá lá, algumas cervejas de todos estes anos.

Recuperar o passado hoje nos basta um clique. Localizar algo ou alguém dispensa a fadiga do carteiro ou arquivos impressos saídos das gigantescas prensas de Gutemberg. Nem precisamos mais calcular apreensivamente o tempo de um telefonema internacional por medo de uma conta pesada.

Há também redes sociais, através das quais podemos recuperar amizades dispersas ou bisbilhotar vida alheia, o último hobby global. Com o clique, recuperamos do arquivo invisível o passado em imagens e vozes, dispensando relações táteis e intermediários enervantes. Mas podemos cancelá-las no etéreo com a mesma velocidade. E o fazemos, diariamente.

Não sou refratária a toda essa comodidade. Ao contrário, sou infinitamente beneficiada no trabalho e nas relações afetivas; sobretudo por me encontrar fisicamente longe das minhas referências culturais, famílias e amigos. Desfruto também da outra vertente, a globalização - esse mal necessário - , através de vôos econômicos e outros serviços que me ajudam a aplacar emoções retidas pela distância.

Porém, com a nova percepção do tempo, tenho a impressão de que algo tenha sido subtraído da nossa alma. A espera ou a expectativa, por exemplo. Será o preço a pagar pela voracidade que reduz a existência de 20 ou 30 anos em dois segundos.

O que me perturba nesse estranho senso de vazio é que o mouse parece ter banalizado nossas ações. Palavras como nostalgia e saudade não permitem mais margens para ruminações ou ressentimentos, porque o ontem e o hoje perderam a linha confinante. A volatilidade nos tolheu também o direito a devaneios e fantasias. Como aquela emoção que precede a busca nas redes sociais por amizades perdidas ou amores desencontrados. O desejo é aplacado e suprido tão instantaneamente que o prazer se vaporiza para cair novamente no esquecimento.

Mas são apenas ruminações passageiras, enquanto - raios - , ainda continuo a procurar o bendito documento.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Sua Santidade o Encanador II



Se posso divinizar um profissional no panteão dos deuses salvadores da humanidade, este é - enquanto eu viver neste lado do hemisfério - o encanador. Me refiro ao bravo técnico confiante e arguto, que continua a desbravar selvas urbanas e apartamentos, sempre armado de uma chave inglesa e uma boa conversa. Um intrépido, sem temor da crise financeira internacional e de maridos desconfiados.

Este é um ofício do qual não abriria a mão, caso eu pudesse reencarnar numa profissão invejada e com certeira vocação para a riqueza. Renascer num hipotético especulador de Wall Street ou num expert informático de Silicon Valley? Estes precisam de investimento pesado de terceiros e um emaranhado de influências; e ainda, contar com equipes muitas vezes traiçoeiras. Vai que um auxiliar de contabilidade sopre seus segredos a George Soros ou a Steve Jobs ? E qualquer deslize, as perdas são oceânicas.

Já o investimento do profissional solitário se limita a duas trocas de macacão manchado de graxas, meia dúzia de chaves e o principal segredo profissional: o jogo de simulação técnica aliado a um punhado de dialética.

Lamento que o meu bom cobertor de orelha não tenha escolhido a carreira de encanador quando jovem. Se ele possuísse um MBA em hidráulica, a esta altura eu estaria nos mares do sul, tomando água de coco, lendo bons livros e pensando apenas "com que roupa vou à festa hoje à noite". Tudo graças aos apelos descabelados de donas-de-casas atrás de salva-vidas onde se segurar nas pequenas inundações domésticas. E é nesse momento que o encanador faz jus à divinização, ao estender-lhes a mão entre as nuvens celestiais com coros de gospel ao fundo. E cobrar 420 euros por troca de alguns parafusos no registro de água.

Um encanador italiano inteligente é aquele que deixa o seu Lamborghini ou o carro-reserva da família, um Maseratti GranCabrio, discretamente guardados na garagem para não ser contraprodutivo. Chega com o velho furgão amassado e um convincente macacão desbotado. Afinal, os oficiais-leões da Receita italiana aumentaram a guarda nos últimos anos.

Mas suas potenciais e inertes clientes são as doces criaturas, as mulheres. E se elas trabalham fora e nunca ouviram falar de disjuntor ou válvula de registro, a tarifa pela ignorância lhes custará o triplo. E mais alguns extras, conforme a emergência. Sábados e domingos, tarifa quadruplicada, sem a nota fiscal, o que lhe garante a manutenção da sua casa de praia em Seychelles ou os estudos do primogênito na Oxford. As mulheres clientes compreendem, certamente, o que é uma despesa doméstica para um chefe de família, como a do pobre encanador.

Quem sabe eu ainda consiga persuadir meu sobrinho a largar a área médica e convencê-lo a se tornar um encanador.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Bastardos gloriosos


Não vou fazer rodeios. Somos uma nação bastarda que redundamos até nos sobrenomes extensos como um trem. Pronto. Mas tem o aspecto genético positivo nesse abastardamento - uma ressalva para não levar uma paulada - , que o pobre escrivão do cartório certamente não concordaria comigo. Haja espaço no formulário.

Um contador da esquina pode se chamar José Edicleyton Tapajós de Rego Pinotti Soares da Silva Schneider, mas o chamamos de . E ninguém se lembra do resto. Mesmo a balconista da padaria onde tomamos um cafezinho pode carregar uma suposta linhagem de respeito, ou não se chamaria Marineide da Silva Ortiz Soares de Andrade Albuquerque Nakamura De Santis, a simpática . No máximo, Mara, para dar-lhe um pouco de consistência fonética e um mínimo de contrapeso à extensão.

O brasileiro só começou a se interessar por árvore genealógica da família por razões puramente migratórias. Para o efeito de vistos, se entende. E ainda, ganhou vantagens nisso. Com sobrenomes quilométricos - mesmo desconhecendo seus ascendentes, laços e nós cegos de tanta miscigenação - pode apostar em um dos cinco ou mais do que dispõe. Pode ser o visto para Portugal, Espanha, Itália, Japão, Nigéria e até para a nação Xingu.

Quem sabe o Silva que carrega tenha um remoto parentesco por parte do cunhado do tio-avô, que não assumiu a paternidade com a prima da auxiliar da cozinheira-chefe da corte da família Bourbon? E vai que o cônsul espanhol, antes de assinar o visto, identifique a linhagem do Silva, o mecânico do bairro, exatamente no período de domínio espanhol sobre os lusitanos e o coligue a Orleans? Pode vir à luz até um título nobiliar, com direito a herança para brigar, caso perca a oficina mecânica com a crise.

Mas o problema da busca pelos ascendentes não deixa de ser uma odisséia - dada a nossa precária formação escolar - , sobretudo quando devemos descobri-los num determinado contexto da História universal. Afinal, mesmo que a internet nos dê acesso aos tempos de Moisés para chegar à nossa genealogia, mal sabemos situá-la historicamente, já que ninguém se lembra nem menos o ano em que Tiradentes foi à forca sem recorrer à Wikipédia.

Nessa recente corrida por genealogia, descubro que no Brasil, onde vive a maior comunidade japonesa no mundo, revela uma singular estranheza. Ninguém tem um avô pedreiro ou pescador. Todos têm descendência de nobres samurais e de grandes senhores daimyo dos xogunatos que remontam ao período de Nobunaga. Falta descobrir os descendentes de Musashi e Naruto, mas tenho certeza que ainda os encontrarei nos interiores de São Paulo.

Eu? Segundo a minha mãe, parece que tenho algo a ver com o imperador Akihito. Sem falar da homônima indústria japonesa de motos da qual, com um bom advogado, eu possa talvez provar que tenho direito a alguns trocados de herança.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Bailinhos e Vassouras


Quando a garagem não era cedida por um compreensivo pai, a mesa do pequeno promotor de turno ficava no canto da sala, à disposição de todos. Tigela de cristal cheia de ponche, com maçãs e abacaxis flutuantes, canapés de patê de sardinha e a primeira bebida de batismo para os grandinhos em vias de pequenas transgressões, a cuba libre.

Os meninos, que até poucas horas antes do banho brincavam com carrinhos de rolimã e as mais novas de bibelôs ou bambolês, se viam repentinamente com a estranha palpitação no peito diante daquela garotada em suas melhores roupas de festa. Era a vez das testosteronas brincar com todos eles.

Quando o ponche já começava a tocar o fundo da tigela, os garotos eletrizados já sabiam o que fazer. Com vassoura à vista, espontaneamente abria-se um espaço ao centro, recostando todos à parede. Entrava em cena a luz negra, em perfeita sincronia com os primeiros acordes do 'protodeejay', - que não passava de garoto mais abonado do bairro com a própria vitrola. Vitrolinhas vermelhas ou azuis, que mais pareciam brinquedos e que hoje encantam colecionadores saudosistas.

E vai com Ben, do garoto 'Maicon' Jackson! As mais tímidas fingiam conversar com as amiguinhas, ainda que seus corações bombassem a mil por hora. As mais precoces já sabiam jogar os primeiros charmes e a provocar conflito entre os meninos. Por elas, a vassoura se alternava repetidamente no temor que as músicas terminassem. Tínhamos que retornar às 10 em casa, ainda que o bailinho fosse ali na esquina, na própria calçada. As horas pareciam passar em minutos.

Naqueles primeiros bailinhos, inesperadas protuberâncias entre os corpos coladinhos nos indicavam - entre receio e curiosidade ingênua - as primeiras descobertas da própria sexualidade, antes de deixar a infância. E a vassoura - este objeto ordinário e doméstico - , se tornava o barômetro das nossas primeiras vaidades naquele início dos anos 70.

Poucos anos depois, Yes, Led Zeppelin e Deep Purple ocupariam nossas mentes mais insanas, arrastando a inocência de 'Maicon' para trás.
* À Tânia, com afeto inalterado no tempo e no espaço.


terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Síndrome de Peter Pan



Acabo de ler esta manhã uma estatística européia que indica a Itália à frente da Espanha e Irlanda com maior percentual de jovens, entre 20 e 30 anos, vivendo no aconchego da família. São 70% deles vivendo sob a saia da mãe. Com roupa lavada, comida pronta e, claro, uma ajudinha econômica para fins de semana porque os pobres marmanjos, ou fingem ou desconhecem o senso de independência.

Segundo os dados, apenas 28% da Grã-Bretanha e 18% dos jovens da Suécia vivem na comodidade garantida pelos pais.

Creio que o fenômeno italiano não deva ser atribuído apenas à psicanálise e nem à universalmente famosa proteção da mamma italiana. Dando-se um punhado de desconto na questão cultural, o minguado mercado de trabalho, o rebaixamento dos salários - consequente da globalização - e o alto custo de vida das grandes cidades já fulminam qualquer idéia de autonomia dos jovens.

O aluguel de uma quitinete em Milão, de dimensão de 30 a 35 metros quadrados, - correspondente a muitos banheiros paulistanos da região de Jardins - custa em torno de 800 a 900 euros mensais. Ora, para um recém-diplomado, que a duras penas tenha obtido um emprego,o salário inicial será de 900 a mil euros mensais. E não será uma pós-graduação ou doutorado a garantir-lhe um rendimento melhor. E, mesmo que um benevolente pai - com excepcional mimo - decida adquirir a tal quitinete, o imóvel não lhe custará menos que 200 mil euros.

E pensar que os futuros aposentados dependerão destes jovens já me faz prever um panorama cinzento. A propósito, os três países com maior número de marmanjos dependentes são católicos. Mas a análise deste detalhe eu deixo para os outros.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Odores de feira



Preparei estes pastéis com um providencial molhinho para alegrar meu fim de semana.

Os milaneses sofrem do mesmo mal dos paulistanos. Na sexta-feira à tarde, um fenômeno recorrente começa a transformar a cidade, pontualmente. As nuvens se fecham cinzentas e a meteorologia se volta contra os habitantes. A desolação do panorama em preto e branco e o frio cortante do inverno os enclausuram no calor da casa. E os confinam na introspecção, como me encontro neste momento.

Mas pastéis para mim - mais que seus sabores - , significam cores cintilantes, rumores e espaços abertos. Dos feirantes brasileiros disputando ofertas de seus produtos a alta voz; perfumes de mangas e goiabas pelas quais "mulher bonita não paga"; donas-de-casas com seus carrinhos lotados de verduras e peixes e uma infinidade de odores, cores e vozes.

O vinho não combina com pastéis. Melhor seria uma garapa, um caldo de cana fresco - quem sabe, com uma espremida da limão sobre ela - que espanta os males urbanos com sua cor turva, mas de infinito poder de clarear nossas mentes.

No jargão de feira, seu sabor me 'alumiou' o domingo.


quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Aparências


Eu estava no trem a caminho de Florença por razões de trabalho, quando à minha frente se sentou um jovem de seus 30 e poucos anos, impecavelmente vestido e estudada indiferença com o ambiente ao redor. A vaidade parecia gritar ao mundo quanto o seu perfil urbano de profissional em ascensão já havia lhe garantido um invejável sucesso entre os desprezíveis passageiros ao redor.

Mal sentou-se, cruzou espaçosamente as pernas esbarrando as minhas, sem me dirigir uma palavra de desculpas. E enquanto falava ao celular entre o ombro, abriu o laptop ocupando tudo para si a mesinha que nos dividia, como se milhões de euros dependessem de cada segundo de seus atos. E num intercalar de volume, vociferava agressivamente com "non hai capito?!" e sonoros "cazzo!", para abaixá-lo quase sussurando o conteúdo que não lhe era conveniente. Talvez quisesse reafirmar seu suposto comando na pirâmide social perante os confidentes involuntários do vagão.

Durante todo o trajeto, sua mão não pousou o celular. Quando não o chamava, era ele quem ligava a todos, repetidamente, como fosse assolado por um distúrbio nervoso.

Eu ainda não havia compreendido por completo o contexto da sua profissão. Supunha, pela desenvoltura e ostentação com que falava aos interlocutores, que fosse no mínimo um ceo de uma importante multinacional. E, certamente, outros dois passageiros que dividiam o sufocante espaço sonoro fingindo ler seus jornais também estavam tão curiosos como eu até onde o jovem prosseguiria com seus maneirismos e superlativos.

Como um refrão de anos atrás, repetido num comercial de refrigerante daqui, a imagem é tudo para alguns. Na falta de um interlocutor direto com quem simular a própria imagem num lugar público, é através do celular que se ostenta aos quatro ventos o que pretende demonstrar de si. O celular não apenas apressou nossas vidas, mas tornou-se também num cúmplice ambulante de todos os vícios humanos. Nos tornamos dependentes dele; logo, temos que ser indulgentes com o vício alheio.

Num ambiente impróprio, a humanidade se divide em dois grupos. Os que não escondem o embaraço e os que sentem os egos alimentados de vaidade ou soberba, ancorando-se naquela premissa do "sou requisitado; logo, sou indispensável". O trinado se tornou um divisor de água dos caráteres humanos.

Certamente o jovem pertencia ao segundo grupo. Foi quase no final da minha viagem que desvendei seus segredos em conversas sussurradas. Se desculpava com o chefe da imobiliária na qual trabalhava como corretor, de que havia dois meses que não conseguia sequer vender uma casa.

Fingi continuar a leitura monótona do meu livro, já que àquela altura, sua vida privada havia invadido a minha. E foi no décimo telefonema de sua mamma, que o sujeito se revelou involuntariamente. Suplicava-lhe que não contasse ao papá de que havia três meses que não pagava o aluguel do seu loft e que estava para ser despejado pelo proprietário irredutível. "A propósito, você pode me emprestar 300 euros?" Foi a última frase que ouvi, antes de descer em Florença.

domingo, 10 de janeiro de 2010

A lambreta branca


Me lembro que já de manhã, as rádios começavam o tocar o hit daquele ano, o Hey Jude, dos Beatles, e as cigarras disputavam o rítmo de fundo, escondidas entre goiabeiras e abacateiros do quintal.

Da cozinha da minha avó, outros sons domésticos formavam uma orquestra à parte. O frigir das panelas ao fogo, o bater dos pratos e travessas e o tilintar dos copos, entremeados de muitas risadas femininas. Um exército de mulheres de vizinhos e parentes, munido de aventais e mangas arregaçadas, num vai-e-vem de preparativos para a festa de casamento do meu primo.

Como se quisesse introduzir um interlúdio na obra musical daquela iminente festa, meu primo - o grande noivo daquele dia - me chamou da sua lambreta branca. Era o seu último passeio de solteiro em duas rodas. Me pôs em pé entre o banco e o guidão, protegida por seus braços. A minha idade não compreendia a razão da sua pequena fuga, quando horas depois, deveria estar de banho tomado, perfumado e bem vestido, diante da igreja.

Fizemos o passeio aleatório entre os frondosos eucaliptos e casarões de fazendas vizinhas, até alcançar o asfalto. Lá, acelerou a lambreta, enquanto inúmeros odores passavam pelo nosso olfato. O cheiro de estrumes de vacas, o frescor dos eucaliptos e o cheiro de gasolina dos carros, que resumiam aquele verão. Ao fundo, a linha azulada da serra da Mantiqueira nos seguia, e como fotogramas que mudam em segundos, os pastos, casarões e porteiras passavam como flechas por nossos olhos.

Não me lembro quanto durou o passeio. Lembro apenas que estávamos sentados alí, numa colina em meio às vacas, observando a corrente do rio Paraíba, sem trocar uma palavra. Eu era apenas uma criança, sobre o que poderíamos conversar? Me pergunto ainda hoje o que terá passado pela sua cabeça. Certamente se preparava para entrar numa sagrada instituição, a sua Família; em cujo tempo, a eloquência pelo bom casamento prevalecia sobre escolhas pessoais. Ou, quem sabe, necessitava apenas de uma bocada de ar fresco, antes de fazer parte de formalidades sociais prestabelecidas.

Seu casamento correu bem e feliz. Um Aero Willis verde o aguardava na porta da igreja, um carrão de luxo à altura de um Rolls Royce de hoje.

Eu era feliz porque havia muita comida sobre a mesa, depois da cerimônia religiosa. Chuchus envoltos em papel laminado, cobertos de espetinhos - de queijo, salsicha, picles e azeitona - , balas-de-noiva, sushis, churrascos e brigadeiros. E para evitar parentes insatisfeitos, meu tio se muniu de peixes grelhados - se sabe, japoneses sem um yakizakana não é festa - e sashimi de sardinhas e nishimê - cozidos de inhame, alga marinha e outros ingredientes. A formalidade era perfeita.

São apenas lembranças da infância para me distrair sob um domingo monótono como este.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Compostura, sempre


Era um daqueles restaurantes em que você se curva ao maitre pelo delito de pretender uma mesa, mesmo uma extra, ao lado do banheiro. Teto de arcadas renascimentais, piso antigo de mármore e quadros impressionistas autênticos na parede. Daqueles em que um reles cliente, quanto mais um turista, pode ferir a sensibilidade do chef ou manchar as honras Michelin apenas porque não é um habitual entre os centenários. E ainda, carregar a culpa por sentir que a nossa presença rebaixou o nível daquele ambiente.

Eu apenas acompanhava um cliente japonês, entusiasta com a resenha que lera em uma revista internacional sobre o restaurante. Queria conhecê-lo a todo custo, antes de retornar a Tóquio. Do alto do seu olhar, o monossilábico maitre nos indicou a estrada. O restaurante parecia vazio e os garçons indiferentes, já que a conta de um único cliente já pagava o ostracismo de todos.

De frente à nossa mesa, se sentava um senhor, de ares nobres, com o seu cão labrador, preguiçosamente estendido aos pés da mesa comendo um prato exclusivo. Terá sido carne de primeira. Quem sabe, carne de chianina toscana, imaginei, já fazendo as contas de cabeça. Em torno ao prato do cão, se espalhavam restos de purê e molho rosa sobre o mármore de Carrara, quando o seu dono pegou o guardanapo de linho bordado de brasão do restaurante e inclinou-se para limpar a boca do seu amigo. Passou rapidamente sobre o pavimento e deixou o guardanapo ali mesmo, no chão. Austeros, nenhum garçon apressou a se mexer, como se tal gesto fosse uma ofensa à própria profissão. Se sabe, o servilismo não se inclui nas equações dos europeus, mesmo que a função os exija.

Eram tempos em que havia mesas para fumantes e o cliente não tardou a acender seu charuto cubano, inundando todo o ambiente de fumaça achocolatada, enquanto conversava ao celular sobre leilões de porcelanas chinesas com o seu suposto agente. Outros clientes pareciam inabaláveis, ou fingiam indiferença.

Não é raro observar que no centro da civilização ocidental, certos comportamentos não provoquem indignação ou desconforto. Não se sabe se se trata de um simples desprezo pelas regras sociais ou se essa desenvoltura pressuponha uma segurança inabalável de que nos países ricos e de grandes passados históricos qualquer atitude, mesmo arrogante, possa ser justificada por simples insubordinação do momento. Digamos, um estado de espírito. Transgredir è permitido, quando se tem o dinheiro e a história da civilização da sua parte. Desde que se mantenha a compostura.

A falta generalizada de respeito dos italianos pela fila, é um exemplo. Preferem furar ou formar a sétima ou a décima fila aglomerando-as, para afunilá-las ao guichê. E os fazem sem pestanejar. E sem dar ouvidos aos protestos de quem se põe civilizadamente atrás do outro. Uma passada rápida de apagador e as regras sociais morrem ali. Claro, desde que tal atitude não parta de indivíduos de países periféricos, porque aí é "coisa de terceiromundista" e merece apenas um meio-sorriso de desdém. Transgressão com compostura e elegância, tudo bem. A cultura eurocentrista tem sempre razão.

domingo, 3 de janeiro de 2010

Assalam Aleikum 2010


Bizâncio, Constantinopla ou Istambul. Seja sob qual aspecto o observemos, um post não será reduzido senão a apenas um grão de areia, diante da vastidão histórica e cultural deste pedaço que divide o Oriente e o Ocidente.

Portanto, para começar o ano de 2010, um assalam aleikum a todos! E nunca mais um Bush Pai, Filho e Espírito Santo Radical Islâmico. Amém.