quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Desperdício


Estava para postar sobre essa 'comidinha do bem', da foto abaixo, preparada no último domingo com a reciclagem de todas as sobras da noite anterior, quando coincidentemente me deparei com dois artigos publicados hoje, relacionados ao tema.



O primeiro discute o desperdício de comida no mundo, no fórum da BBC Brasil. O outro, publicado no jornal italiano La Repubblica, cita o caso de uma pequena cidade australiana de Bundanoon, com apenas 2 mil habitantes, que decretou a proibição da venda de água mineral na cidade. Os números pelos quais a cidade se baseou para a drástica decisão revelam a incoerência da devastadora indústria de consumo e o círculo vicioso no qual todos somos cúmplices, ao repetir a máxima popular "minha contribuição não faz nenhuma diferença".

Segundo o artigo, é necessário 81 milhões de litros de petróleo e 600 bilhões de litros de água para produzir 154 bilhões de garrafas plásticas consumidas hoje. Um paradoxo, pois 1 litro de agua mineral que compramos na esquina, necessitou de outros 4 litros de água apenas para produzir o seu recipiente. Sem falar da crescente expansão e lucros das empresas engarrafadoras, que nos impõem este bem natural e vital como fosse um 'produto' ou até uma grife.

Ao diagnosticar problemas renais há cerca de 8 anos, me incentivei a cortar o consumo de água engarrafada pelo de torneira, como solução mais racional e consciente para a terapia. Eu precisava tomar ao menos 2 litros de água por dia. O tratamento e distribuição da água encanada de Milão são frequentemente certificados como excelentes - iguais ou até superiores que muitas marcas difundidas - , razão a mais para que eu me liberasse de vez do remorso com a multiplicação de garrafas no meu lixo. Era um non-sense suar sete camisas para buscar minhas provisões no supermercado da esquina por um bem que possuo em casa e enriquecer as empresas de PETs e engarrafadoras. E ainda, ter que descer continuamente com sacos gigantescos de lixo para o cestão diferenciado do condomínio.

O artigo me estimulou a recalcular minha pequena mudança doméstica. Nestes anos de terapias renais, deixei - surpreendentemente - de produzir de 3 a 5 mil litros plásticos em casa. E num cálculo inverso, a indústria produtora de Pets economizou 20 mil litros de água para produzir o meu lixo. Quem diz que o nosso microcosmo não faça o macro?

Bem, sobre a comidinha da foto acima deixo para a próxima...

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Berlim Oriental III



Já escreví precedentemente aquí sobre a minha rápida experiência em Berlim Oriental, antes da queda do muro, mas só agora, quando o fato histórico fará 20 anos em novembro próximo, percebo a crueldade da passagem do tempo. O tempo sobre os ombros é tirano, e nos tenta subtrair energia e vitalidade, sem remorsos. Mas foi naquela viagem que aprendí um pouco mais da vida, para alcançar a idade realmente adulta.

Quando ainda era uma mera universitária no Brasil - combinada a todos os excessos - , achava que as nossas convicções fossem imunes ao tempo. Mas só ele - sempre ele - soube me ensinar que as convicções de ontem podem ser tolices de hoje. Me formei e continuei a acreditar em papos de botecos por muito tempo, até eu conhecer ambos os lados do muro. Que ironia, me revelei como aquela que prefere a ala dos que querem o conforto. No seu vasto entender.

Quando visitei Berlim Oriental, com um visto de apenas 24 horas - era o máximo de tempo que os socialistas concediam - , ainda arrastava a crença de que a divisão de bens fosse o ideal da humanidade, mesmo observando tanta melancolia e tristeza nos olhares dos próprios berlinenses orientais.

Não é necessário que hoje, ao compreender a ilimitada insaciabilidade do homem, os neoliberais me dêem alguma lição de política econômica. Compreendí já naquela viagem, com grande atraso, que a igualdade não existe. E nem o desejam. Enquanto o homem for aquele bicho que nós estamos carecas de saber quem seja.

domingo, 20 de setembro de 2009

Sua Excelência, o Queijo


Queijos. Muitos queijos. A bem da verdade, um mar de queijos. De todos os tipos e proveniências. Uma covardia para o meu estômago, indignado com a própria capiência.

Nosso mergulho nas obras-primas criadas por aquelas doces criaturas - vacas, ovelhas e cabras - , ocorreu ontem, na pequena cidade de Bra, situada sobre uma das inúmeras colinas circundadas por vinhedos, que caracterizam a região de Piemonte. Trata-se da feira bienal Cheese 2009, organizada pela Fundação Slow-Food italiana, que este ano reuniu 50 stands e 186 bancas de várias regiões da Itália e do mundo. E o melhor, com direito a degustação dos produtos e participação em vários eventos paralelos, como o de enologia, gastronomia, música e muitas, muitas palestras.


Por todo o dia percorremos, stand por stand, com o 'ingrato' trabalho de prová-los antes de decidir - entre centenas de variedades -, o que traríamos para casa. Oh, quanto foi 'penoso' ter que saborear brousse francês de cabra e pulltost norueguês; ou decidir entre cheddar 18 meses irlandês e o pecorino infossato, queijo de saco enterrado sob frias terras de Abruzzo. Não bastasse a dura tarefa, tive que entremeá-los com goles de barolo e nebbiolo piemonteses, que chateação...

Ricota búlgara de cabra , cuja tradição era processada e maturada no
estômago do mesmo animal, banida hoje pelas novas leis sanitárias.

O saldo deste passeio? Nove tipos de queijos na sacola para retomar os 200 quilômetros de estrada para a casa. Com a leve impressão de que 200 pessoas haviam tirado os sapatos dentro daquele carro.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

A fila anda

Costumo medir os sinais dos tempos no calhamaço de panfletos que entope a minha caixa de correspondências.

Empréstimos sem fiador "a juro inócuo"; encanadores de emergência "sem cobrança de taxa de saída"; conserto de dentaduras "em apenas 24 horas"; excursões gratuitas em ônibus de luxo para fábrica de móveis X "sem compromisso de compra" (mas parada e almoço obrigatórios no Restaurante Y) e outras apelações afora.

O barômetro é bastante rudimentar, é verdade, sem nenhum embasamento científico. Mas àqueles cujos índices do governo ou de agências econômicas parecem apenas números estatísticos dirigidos aos banqueiros e grandes empresas, estes panfletos podem servir de referência ao estado real da crise. Ao menos para nós, o 'povinho'.

Numa economia tradicional e refratária como a italiana, recentemente saída dos crivos estatais e baseada em pequenas empresas - quase sempre de gestão familiar - , os novos serviços fazem, sim, grande diferença. O da percepção de quanto estamos imersos na crise. E isso fere até a identidade cultural italiana, atropelada pela repentina liberalização de mercado e concorrência, e pela necessidade de revisão dos orgulhos nacionais.

Quando me estabelecí neste país, há mais de 20 anos, era quase impensável que uma pizzaria fizesse entregas a domicílio. "Pizzas são boas sobre a mesa de uma pizzaria", dizia a grande maioria defensora da boa família cristã-tradicional-ortodoxa. Como adepta do 'slow-food', concordo plenamente com a tal filosofia, se isso não transformasse o mercado italiano num feudo de província em contraste com o resto do mundo.

Me lembro, ainda hoje, - e foi no final dos anos 80 - que o meu aparelho de fax se emperrou justamente num caso de emergência e tive que recorrer ao serviço externo para enviar um documento a Miami. O documento me fora enviado inicialmente do Japão, para que eu posteriormente repassasse a Miami, para completar uma transação comercial.

Percorrí papelarias e agências telefônicas, até descobrir que somente o Correio italiano - mas então apenas a agência- matriz da cidade - fazia o serviço de envio de faxes. Dentre 10 guichês, apenas um funcionava. E aquele único funcionário público-bufão ainda se lamentou com a minha presença, pois a minha petulância o distraiu da leitura do jornal " La Gazzeta dello Sport". Irritado por ter que me 'servir', ainda tentou me intimidar em altos decibéis para que eu retornasse mais tarde, porque "agora estou ocupado". Ao final da discussão, o funcionário ainda teve o caradurismo de afirmar que naquela agência 'não enviava fax a Miami' (!), por razões técnicas!

Mas esta é apenas lembrança de uma Itália que renunciava à herança craxiana pelo berlusconismo, não fosse o pequeno intervalo-escândalo das operações 'mãos limpas' do bom magistrado italiano. Não fosse a internet hoje, é possível que eu me encontrasse em Cariri d'Oeste, trabalhando em minha horta, longe do estresse que comporta uma transação comercial.

De volta aos panfletos que inundam a minha caixa de correspondências, noto que hoje, a culpa aos bodes expiatórios de turno - "estes chineses falsificadores" e trabalhadores extracomunitários - já não encontra um interlocutor que o rebata ou compartilhe da mesma opinião, senão na mídia pró-Berlusconi. Encontrar um culpado externo pela crise não cola mais. O bolso dói, e a urgência de trabalhar e concorrer não dá vasão às discussões inúteis. Finalmente eu vejo a fila andar.

* Mas o comércio, bancos e instituições continuam a fechar na hora do almoço...

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Não é seu feudo, senhora


A senadora Patrícia Saboya foi rebaixada ao status de comum-mortal ao ser retida no aeroporto de Roma para uma vistoria geral, segundo os jornais brasileiros esta manhã. E parece ter armado um megabarraco, blasfemando por presença de uma otoridade diplomática brasileira que a liberasse da Imigração.

Que petulância, estes oficiais italianos. Mas eles não sabem "com quem estão falando"?

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Identidade cultural


É natural que eu, brasileira descendente de japoneses, seja sempre abordada como chinesa ou japonesa por estes lados do Ocidente. Não possuo absolutamente nenhum dote anatômico que me remeta ao país do Lula. Além dos olhos puxados (aquí docemente chamado de "olhos de amêndoas"), não sei sambar, não tenho um traseiro generoso e sou branquela.

Já me crucificaram até pelas atrocidades cometidas por Mao durante a Revolução Cultural, apenas para citar a pequena confusão. "Xiè, xiè", mas sou da terra onde cantam os sabiás. E então, me vem a vontade de ir embora para a Pasárgada, onde possa ser compreendida.

Isso significa um eterno duplo fardo. Ou triplo, segundo o interlocutor. O de ser interpelada sobre o Japão e o Brasil. Devo ter, na ponta da língua, informações políticas, econômicas e culturais aprofundadas e atualizadas de ambos os países, para não dar vexames. E desmentir os tristes lugares-comuns de ambos os países.

Não é uma tarefa fácil, pois tudo o que me abordam é centrado na perspectiva de grandes transformações históricas. Devo constantemente (e precariamente) tirar gilbertofreyres, florestanfernades e xogunatoseodanobunaga das mangas para escamotear minha precariedade e dupla identidade cultural. Inútil dizer que meus antepassados chegaram ao Brasil no início da década de 30, e que muitas águas e gingados correram até o meu nascimento.

Mas, sabe-se, basta utilizar a tática dos pseudo-intelectuais que se ancoram no subterfúgio mais prático. Tirar da cartola nomes 'notos' como Comte, Montesquieu ou Weber, e a coisa está feita. Basta citá-los para intimidá-los a não fazer perguntas tolas para a cabeça ainda mais tola como a minha.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Indulto a quem?


Se não possuem o visto regular, nada feito.

Os Mohameds, Badescus ou Escobares que diariamente se levantam às cinco para carregar tijolos, jogar lixos ou carregar caixas de tomates para sustentar suas famílias são criminosos. E o clandestino deverá desembolsar de 5 a 10 mil euros de multa, antes de serem expulsos do país. Desde maio, a xenofobia dos aliados do governo Berlusconi está rendendo novas entradas para os cofres vazios do Estado. Graças aos miseráveis.

Mas, se sabe. Não há político italiano - com seu gordo salário parlamentar - que não esconda em casa uma Juanita clandestina que troque fraldas de sua mamma carrancuda e inválida. Ou do nonno sem-vergonha, que mesmo acamado, não dispensa um beliscão no traseiro da chiquita porque é o único poder que ainda lhe sobrou na vida. Não, os patrões não sujam as próprias mãos, nem para acudir a própria mãe.

A solução? É uma anistia geral a todas as clandestinas "acompanhantes de idosos" - sem limite de números - , que entra em vigor a partir de hoje. Basta a família comprovar que manteve a tal clandestina em casa desde 30 de março último, e o "crime" cai automatiamente em prescrição.

Claro, esta anistia beneficia apenas os ricos. Blasfemando ou não contra os impostos, eles ainda podem arcar com os encargos sociais e trabalhistas.

O que restará à classe média? Talvez continue corrrendo o risco de mantê-las escondidas em casa, a baixo salário. Afinal, quem paga pelo crime não é ela. É a clandestina que ousou trabalhar.