quinta-feira, 14 de maio de 2009

Estética e Stendhal

Seria um lugar-comum inserir esta foto, não fosse por razões que ainda me emocionam fortemente.

Ao passar em frente à esta catedral, me lembro sempre de uma cara amiga, que há cerca de 15 anos, veio me visitar de uma distante região do Japão. De mochila, "on the road" pelo continente, sem os filhos e sem o marido. Liberdade exigida e decretada por eles.

Ao erguer os olhos emocionados para os vitrais da catedral e suas gigantescas colunas de mármore, foi tomada por uma incontrolável vertigem e êxtase, à beira de perder seus sentidos. Enquanto observava paralisada as esculturas e obras de arte, suas lágrimas corriam sem parar, e em silêncio, embriagada por tanta beleza estética.

Em estilo gótico, a construção de Duomo di Milano iniciou-se em 1386 e levou cerca de 400 anos para ser concluída. Milhões de toneladas em mármore e séculos de rio de dinheiro terão passado alí, com o suor e sangue dos camponeses e fiéis, os pilares da Igreja. Mas a estética é indescritível, tamanha a beleza.

Naquele dia presenciei, de fato, o êxtase que precede uma síndrome de Stendhal, na sensibilidade desta amiga. Ética e Estética não são antagônicas, como me lembra Nei.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Arquitetura fascista


Tenho me dirigido diariamente ao hospital, em visita a um membro da família, por razões pouco animadoras. Espera-se sempre que qualquer conforto possa ser útil na inversão da doença.

Não creio que exista alguém que aprecie um ambiente hospitalar. Confesso, apenas o dever moral supera o esforço psicológico com que me preparo para ir até lá.

Talvez para compensar a minha inquietação, faço todo o percurso interno à pé, da cidade-hospital, através das longas alamedas do Ospedale Maggiore, repletas de jardins e flores.

Trata-se de um hospital construído por Benito Mussolini, em 1939, cujas linhas da arquitetura fascista, projetadas pelo arquiteto Giulio Arata, transmite a grandiloquência e a difusão dos ideais de massa do regime. Ocupa uma área de mais de 320 mil metros quadrados, com edifícios monumentais (em mármore) para cada setor, cortada por alamedas e jardins, o que requer o uso de microbus para a circulação interna.

A arquitetura fascista se fez presente também na história de São Paulo. Basta lembrar o já demolido casarão dos Matarazzo, na Paulista. Ou o edifício Matarazzo, no Viaduto do Chá, assinado pelo arquiteto Marcello Piacentini, conhecido como "arquiteto de Mussolini". Na Itália, Piacentini assinou várias construções monumentais, como o Palácio da Justiça de Milão, a Universidade La Sapienza de Roma, Teatro de Ópera de Roma, entre outras.

Fascista ou não, sua arquitetura me aplaca a melancolia com suas belas linhas, antes de chegar ao edifício onde se encontram as fatalidades.

domingo, 10 de maio de 2009

Boteco da LuMa - Menu 2



Sugestão do Dia: (placa sobre a calçada, escrito a giz)

* Anchoveta crua (Engraulis encrasicolus), temperada apenas com sal, azeite, limão siciliano e pimenta-do-reino. Os italianos se servem com as mãos, e ao terminar, limpam o fundo do prato com o pão – a tal da scarpetta - , para aproveitar o delicioso suco, fresco como o sabor do mar. (A anchoveta é uma parente da nossa manjuba)

* Sardinha miúda frita. Tão crocante que se come com a cabeça.

* Aspargos na manteiga. A regra é al dente, com apenas sal e pimenta-do-reino. Estamos em plena estação desta verdura.

* Rabanete agridoce. Vinagre de maçã, sal e açucar, deixando curtir por ao menos 5 horas.

* Vinhos brancos acabaram. Só tintos: Barbera D’Alba, Syrah e Valpolicella Classico Superiore.


"Fiado, só Amanhã", é um aviso apenas aos críticos gastronômicos. Para o resto do pessoal, é tudo por conta da casa.


sexta-feira, 8 de maio de 2009

Vagões para imigrantes


"Vagões só de milaneses". Não, mais restrito ainda. "Vagões só para os imigrantes extracomunitários", diz outra voz. Retorno do Führer? Novo apartheid? Ainda não.

Esta foi a proposta lançada ontem, aos gritos histéricos em plena praça do Teatro Scala, no centro de Milão, pelo deputado Matteo Salvini, representante da Lega Nord, o polêmico partido secessionista e xenófoba, cuja batalha principal no governo é a luta contra a imigração.

Ele incitava a multidão e passantes a aderirem à proposta pela "segurança" dos cidadãos, alegando que as poltronas de metrô, ônibus e trans devam ser reservadas aos italianos. Na sua opinião, o direito de sentar-se dos italianos e milaneses no transporte público é tolhido por imigrantes (leia-se os não-europeus do Terceiro Mundo), sem porém esclarecer o que se entende por "segurança" neste contexto.

Não precisamos de outra Rosa Parks na História, a negra norte-americana que recusou-se a levantar da poltrona permitda apenas aos brancos, nos tempos mais vergonhosos da segregação racial.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

A crise e a janeleira


Economia pode não ser uma ciência exata, mas tateando aquí e alí com minhas equações elementares, me deparo com estranhezas do mercado de consumo incompreensíveis para o meu escarso conhecimento.

Moro num prédio de esquina, de frente a uma galeria de arte e leilões, a "Galleria Rosenberg". Veio a estabelecer-se aquí cerca de oito anos atrás, período em que coincidiu com a introdução do euro, o aumento do custo de vida e o início do empobrecimento da classe média européia.

Eu sou um exemplo desta consequência. Foi naquele período que comecei lentamente a perder meus melhores clientes, compradores de produtos de luxo italianos. Por trabalhar apenas com o mercado japonês - até então o mais próspero e melhor pagador - , acabei por pagar um duplo preço, com um câmbio incompatível e um mercado minguado por produtos chineses.

No mesmo vórtice, grifes como Dolce e Gabbana, Armani e Gucci viram descer pelo ralo não apenas os seus lucros, mas também o próprio fascínio e extravagância com o empobrecimento de seus consumidores - a classe média, média-alta e os novos-ricos. E, sabe-se, os ricos nunca enriqueceram as grifes.

Com a globalização, foi inevitável que a conservadora indústria italiana também sucumbisse aos poderes da China, com todos os efeitos colaterais. Desemprego, perda de competitividade, aumento de novos-pobres e o rebaixamento de salários com o fluxo de novos imigrantes. E como a cereja que coroa o bolo, chegou esta nova crise financeira, cujo resultado todos já conhecem.

Paradoxalmente, em pleno março de demissões e quebradeiras internacionais, esta galeria de arte a que me referí acima inaugurou com festança a ampliação de seu espaço, surpreendendo a minha previsão pessimista. Aumentou suas vitrinas por toda a esquina e passou a ocupar também o piso superior, repaginando a decoração interna. Desde então, esta janeleira tem observado um aumento de compradores(?), questionando as incoerências que uma crise possa gerar.

Para o meu espanto, há 15 dias foi inaugurada uma outra galeria de arte na calçada oposta, a menos de 50 metros do meu prédio e da Rosenberg. Sem dizer que mais à frente, na quadra sucessiva, há também uma galeria de Fotografias, a "Photographer's Room". Há 3 anos anima o espaço com importantes profissionais italianos, seus mecenas e badaladeiros culturais.

É verdade que este bairro seja um discreto boêmio, com restaurantes, bares e clubes culturais, mas certamente não serão estes boêmios a alimentar esta pequena amostra do mercado de arte. Nestes tempos de crise?

Segundo um dado recente, a cada 3 novos restaurantes, 2 fecham o batente em menos de um ano nas cidades como Roma e Milão. Nos últimos 3 ou 4 meses, apenas neste pequeno bairro, contabilizei ao menos 5 restaurantes que fecharam. E abriram outros tantos. Os únicos que se mantêm indiferentes à crise parecem os mercantes de arte.

Estas são apenas interrogações de uma janeleira habituada com a economia real, de cujas equações no seu microcosmo não chega a nenhuma resposta.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Não à delação



"O estudo é um direito também dos filhos de clandestinos", afirmou ontem, Gianfranco Fini, ex-expoente do Movimento Social Italiano Direita Nacional (remanescente do movimento fascista) e atual presidente da Câmera italiana.

Ele rebate a proposta de lei promovida pela Lega Nord - ala mais radical anti-imigração do governo - , de impedir que filhos de imigrantes sem o visto regular possam frequentar escolas públicas. Entre outras, ficaria subentendida que os professores deveriam delatar a presença destes alunos. Através da criança, a denúncia levaria à família clandestina, com consequente expulsão de todos. "É inconstitucional, e não há nada de semelhante na Europa", critica Fini.

Meno male, ainda resta a voz de uma direita culta e ponderada de Fini neste tragicômico governo Berlusconi-Ato Quarto.

Taí, mais uma razão para reconfirmar minha aversão por classificações ideológicas entre "direita" e "esquerda" nas questões políticas. É que na realidade berlusconiana, não há outro modo de distingui-los.

domingo, 3 de maio de 2009

Boteco da LuMa


Tenho fixação por comidas de boteco. Sobretudo os aperitivos que requer as mãos, e não os talheres.

Quando ainda vivia em São Paulo, havia um boteco autêntico ao lado do meu local de trabalho. De um cearense arretado, chamado Lula. Não desses botecos pseudo-pés-sujos, mas originalmente sujinho. Balcão de fórmica, flâmulas de time no azulejo, banheiro sem o trinco na porta e frequentado por uma fauna urbana indecifrável. Carregadores, desempregados, biscateiros mas também personagens dignos de contos de Plínio Marcos.

A Lula não faltava o pano de prato(sujinho) pendurado sobre o ombro, nem uma Bic enroscada na orelha. Não que precisasse escrever algo, mas era o seu look diário.

Um frequentador de meia-idade, em especial, trazia sempre um ramo de arruda na orelha. Dizia que era para espantar o "olho-gordo". Chinelinho de dedo, bermuda, e no corpo, uma camiseta-brinde surrada, de algum vereador. Possuía também uma Kombi enferrujada, com a qual fazia fretes. Eu me perguntava quem pudesse ter olho-gordo por ele, mas cada qual com suas obsessões.

No bar do Lula, eu também tinha uma obsessão. A de querer experimentar uma fatia de fígado de boi assado com cebolas, que ao meio-dia, pontualmente, ele servia ao pessoal do frete de mudanças. Os peões não deixavam passar um minuto sequer do horário de direito.

Se sentavam para comer a fatia de fígado - já preto e ressecado, com crostas duras por toda a superfície engordurada - , servida com fatias de pão francês. Depois, os homens terminavam a refeição quebrando os ovos cozidos - amarelo, pink e vermelho - , brigando com o saleiro sobre o balcão. "Bota uns grãos de arroz crú no saleiro, Lula!", dizia eu, manifestando a minha indignação feminina, mas ele não gostava de mudanças e nem de inovações.

Meus amigos de trabalho me impediam de fazer o mesmo. E até hoje, carrego essa frustração, de nunca ter provado o fígado do bar do Lula. Mesmo que isso tivesse me custado uma internação por infecção intestinal.

Hoje, fiz comida de boteco em casa. O clima não é o mesmo, claro. Me falta o país. Por inteiro.

Mas vale a nostalgia. Aí vai a lista do que fiz: abobrinha grelhada, temperada com alho e azeite; batata gratinada com queijo; bruschetta; berinjela assada com gengibre e shoyu; oniguiri assado; carne de porco temperada com gengibre à milanesa e uma garrafa de vinho Vermentino di Sardegna regando tudo.