terça-feira, 6 de outubro de 2009

O bom milanês


Aprecio muito o verdadeiro cidadão milanês, com sua inata discrição e sobriedade. Eles são poucos em Milão. Avesso a frugalidades e rodeios de palavras, a sua aparente indiferença com vizinhos é muitas vezes confundida com esnobismo, mas são os aspectos desse italiano profano que mais me faz sentir à vontade.

É verdade que a mentalidade milanesa nem sempre agrade aos italianos de outras regiões, ao fulminá-la como 'fria' ou 'individualista', para engrossar a lista dos lugares-comuns. São certamente atribuições superficiais sem nenhum ranço, que todos os centros urbanos, industriais e financeiros recebem em comum, cada qual nos seus confins. Eu as corrijo como pragmática e sensata, que preza a sua individualidade sem descer no individualismo. Um bom milanês, em poucas palavras, não se vale de retóricas e nem se esforça a recolher belos adjetivos para sí.

Pessoalmente o meu critério de simpatia nunca se baseou na alegria ou no sorriso de um povo. Prefiro a direta sinceridade e disciplina do cumprimento de palavras a profusão de alegria e eloquência evasiva. Abraços efusivos e risadas em altos decibéis conquistam apenas nossas impressões imediatas, o que nem sempre se traduzem em respeito. Suspeito sempre dos superlativos.

Estendo esta mesma impressão dos milaneses aos japoneses de Tóquio, que por razões profissionais mantenho maior contato que das demais cidades japonesas. Não porque a cidade seja mais rica, afluente e cosmopolita do Japão. Me refiro ao velho e bom japonês dos tradicionais bairros de Tóquio, que por razões que só culturas antigas são capazes de manter naquele vórtice humano, ainda conserva com sobriedade os bons princípios de usos e costumes nas relações humanas. Tudo isso com o devido respeito e distância.

Financeiramente, meus clientes de Tóquio nunca renderam alguma vantagem significativa para o meu bolso. Com algumas exceções, quase todas as transações comerciais com eles foram bastante modestas, de dimensão humana, suficientes para eu pagar minhas contas e impostos. Em contrapartida, tive muitas compensações com eles. A certeza da relação duradoura e contínua, baseada na confiança recíproca de palavras. E nem sempre ditas. Ao longo dos anos, muitos deles mudaram de setor devido à crise, mas ainda mantemos relações cordiais como se nada tivesse mudado.

Será uma casualidade, mas não obtive a mesma satisfação com alguns profissionais de Osaka, cidade igualmente grande, cuja cultura se distingue dos demais japoneses pela grande desenvoltura e uma escancarada alegria. A antítese de Tóquio, em tantos aspectos. Com eles concluí vários furos na água, após entusiasmantes trocas de cartões de visita, muitos souvenirs de presente e promessas em pompa magna de grandes negócios juntos. Palavras. Simplesmente palavras.

Falei disso tudo apenas porque levei a enésima paulada na cabeça ontem, de um novo fornecedor de uma profunda região italiana, com um dos índices mais elevados de desemprego do país, conhecida também pela sua alegria e de "gente che sa vivere". No trabalho, pouco me importa a alegria; me interessa é o peso da responsabilidade.

Bem que eu havia desconfiado da excessiva simpatia e falação durante os ricos jantares antes do contrato. Iniciou com delongas na entrega de pedidos, desculpas esfarrapadas e despudoradas atribuições de culpa a terceiros. Até o cancelamento aleatório do pedido, sem nenhum aviso prévio. Mas não um pedido de desculpas. O meu cliente japonês ficará desfalcado da coleção de calçados este ano.

Seis meses de promessas para acabar com um furo na água. Viver com alegria sim. Viver de alegria, só os humoristas.

3 comentários:

KS Nei disse...

Os tais profissionais amadores.

Eu prefiro ser um amador profissional.

Squenta non. Vira e mexe e tudo bem.

Besos!

Adrina disse...

Dizer o quê, né? Você já disse tudo.

LuMa disse...

Nei e Adrina:
Sempre bom em sintetizar a coisa Nei, gostei do amador profissional. Eu faço parte dessa leva tbém.

Adrina, realmente não há o que dizer. Farei como faz o bom milanês: em vez de espernear, gritar e sobrepor o próprio discurso sobre o outro - como nos debates políticos de TV daquí - fecha-se o capítulo e bola pra frente!