terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

O parâmetro do bolso


Há pouco mais de um ano passei a cortar meus cabelos num salão chinês, a poucos metros de casa. Finalmente acertei quem fizesse bem o que aparentemente parece simples. Curtíssimos, mas cuidadosamente despenteados, como o look de quem vai trabalhar tal como se levanta de manhã, mas sem pijamas.

Por renovar o corte com frequência - por alguns milímetros de aparos - já estava aborrecida com salões italianos onde até então eu recorria. Pelo serviço minimalista - corte sem o xampu com o habitual mau humor italiano - eu pagava cerca de 40 euros e ainda saia de lá sem a convicção de que viera como pedido. Já o jovem chinês, com o corte perfeito, xampu e até massagem extra me cobra apenas 10 euros, uma diferença abissal nestes tempos de contenção.

De fato, o salão chinês é sempre cheio hoje, frequentado por clientes que até poucos anos atrás menosprezava os serviços prestados por estrangeiros. A realidade muda com grande velocidade, mas os velhos clichês são duros a morrer. Há quem ainda acredite que chinês seja definitiva e categoricamente prerrogativa de má qualidade, esquecendo-se que as histórias se alternam. O rádio transistor iniciado pela renomada Sony pode dizer algo à respeito.

No domingo, me encontrei com amigos que vivem fora de Milão, num pequeno vilarejo privilegiado de verde e montanhas. Para festejar, fomos a um restaurante muito frequentado na região por oferecer excelente cozinha italiana, à altura de muitos tradicionais centenários estrelados por Michelin. Seu proprietário e chef eram chineses.

Havia fila de espera na porta. Eu poderia prolongar este texto falando horas a fio sobre os males da globalização, mas ao pedir a conta neste restaurante, nossos bolsos sucumbiram e, acima de tudo, agradeceram.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Astúcia sem fronteira


Com um pouco de intuição e mímica, fui compreendida pelo motorista de táxi em Istambul, na Turquia, de que a corrida era de emergência. Por um repentino problema intestinal com a minha companhia de viagem - que mal conversava comigo para evitar riscos inúteis - todo minuto seria precioso para chegar ao conforto de quatro paredes do hotel.

Mas creio que eu tenha lhe pedido demais, ao suplicá-lo que fizesse o percurso mais breve e evitasse ruas congestionadas para chegar ao destino, pois fizera o exato contrário.

Certamente o motorista não previu que eu não fosse, digamos, uma autêntica "japonesa-turista-fácil-de-levar-na-conversa-e-enfiar-a-faca-por-alguns-yens-a-mais", mas uma brasileira com certo know-how em malandragem tropical. Durante o trajeto, deixou se enganar pelo meu resguardo e silêncio quase monástico, já que não costumo jogar conversa fora com motoristas. É meu meio preventivo para evitar simpatia gratuita paga com trapaças. Se sabe, os turistas japoneses são potenciais vítimas nesse tipo de malícias em qualquer parte do mundo.

De fato, o motorista pegou as ruas mais disparatadas e distantes da cidade. Ao chegar à porta do hotel, eu lhe estendí a nota de 50 liras turcas para as 48 da corrida, algo em torno de 25 euros. Ao pegar o dinheiro, o motorista simulou descaradamente incompreensão, afirmando que recebera 5 liras, e não 50, que escondera rápida e furtivamente entre o maço de notas prontas para o troco. Só percebí o embuste depois que lhe dei outras 50 liras com mil sorries. Só não previu que eu também possuísse vantagem redobrada em insubordinação e rebeldia, adquiridas ao longo dos anos de sobrevivência em meio a astúcia "à italiana".

Ao me recusar a devolução de 52 liras, me transformei numa rumorosa Anna Magnani do cinema italiano e o ameacei a altos decibéis a denunciá-lo à polícia, debatendo-me na poltrona. Surpreso com a reação da turista 'ingênua', o motorista me devolveu rapidamente o dinheiro, e com um sorriso irônico no canto dos lábios, me deixou afundando o pé no acelerador.

Relatei este fato porque no sábado passado, me vi protagonista de um replay do filme turco, aqui em Milão. Ao acompanhar uma cliente ao seu hotel - enquanto conversava com ela apenas em japonês durante o trajeto - , o motorista tentou percorrer por ruas mais estranhas, confiante de que eu fosse uma turista. Ao final da corrida, ainda fingiu que não dispunha de troco de 8 euros. Obviamente recorrí à minha já tarimbada porção Anna Magnani. De novo.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Lobos e "lobos"



Todas as manhãs, ao passar os olhos pelos jornais, me pego arquitetando uma fantasia quase infantil de desforra contra a barganha, clientelismo, fisiologismo e outros ismos que não acabam mais. O de possuir um hipotético poder de fulminá-los, quem sabe, com um eficiente raticida ou uma dolorosa armadilha de caça, até o extermínio total desses desqualificados humanos - reprovavelmente chamados "lobos".

Enquanto isso, esses belos exemplares reais de lobo estão merecendo atenção pelo justo e legítimo retorno. Segundo o jornal La Repúbblica esta manhã, os biólogos que os monitoram no Parque Nacional de Majella - situado na região central do país, em Abruzzo - podem respirar tranquilos pela espécie.

Quase dizimados no início dos anos 70 pela contínua disputa pelo habitat com o homem, os lobos entraram no programa de proteção que já dura 40 anos. O resultado é que se contabiliza hoje uma alcatéia dividida em 12 grupos, num total de 70 a 80 exemplares na região.

Demonizada ao longo de milênios por caçadores, pastores e até pela literatura popular, era hora que a espécie retomasse o seu devido lugar. O homem tem uma dívida moral impagável com estes belos animais.

Quanto a "lobos" de outra alcatéia, tudo indica que estão longe de extinção. Aliás, festejam a multiplicação contínua.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Brasileiro


Minha amiga acaba de me mandar um e-mail no qual conta, entre outras coisas, de que vira num noticiário sobre inundações que afligem o Brasil, um sujeito que andava em meio a rua alagada em bicicleta de circo, aquela com rodas e selim altos para não se molhar.

Não entrou em detalhe e nem me ilustrou a situação, mas fiquei imaginando a cena galhofa desse sujeito, um representante do inesgotável senso de ironia e humor que caracteriza o país até em situações limites. Não resisti rascunhar um pouco de pseudo-sociologia de escrivaninha sobre o ser brasileiro.

Temos uma vocação ilimitada - uma patologia congênita, quase - para ser indulgentes com os poderes. Poderes de todos os números, gêneros e graus. Protestamos e esperneamos publicamente contra o estado das coisas. Mas apenas na mesa de bar. A dialética do direito, dever e cidadania se inflama apenas naquele estreito espaço entre o balcão e a mesa de PVC. Um cantinho onde cada um defende teses salvacionistas - alguns buscam teorias nos gregos, outros até na vitória do Corinthians - por um país livre de corrupção, impunidade e políticos com cuecas e meias cheias de dinheiro.

Quando esvazia-se a garrafa e é hora de voltar para a casa, o entusiasmo por um país melhor retoma a apatia. A resignação só não cai por terra ao encontrar por acaso o Alvinho, primo de um assessor de um deputado, de cujo partido pouco se lembra, que lhe confidencia que "o homem vai chegar lá, e quando ocupar a poltrona, te dou um toque por aquela vaga".

O crime da elite política discutido minutos antes na mesa passa então a ter uma conotação mais branda. O dinheiro na meia passa a ser uma involuntária fraqueza humana e a visão da corrupção se converte em contravenção, um cartão-amarelo, já que promessas para escalar a pirâmide o torna cúmplice dos mesmos males.

A indulgência brasileira nasce nessa barganha. Há aqueles que, distante dos bares, acreditam fazer parte da outra margem do rio, os que direta ou indiretamente supõem ter afinidade com o poder. Se não é um cunhado assessor de um deputado que conta, há um primo que trabalha no Tribunal ou na Receita a dar aquele jeitinho, de colocá-los no contingente intermediário entre o cidadão comum e o poder estratosférico de Brasília.

O emaranhado de influências e cumplicidade nessa massa intermediária jamais poderia render protestos. É que espera-se sempre que os outros o façam. "Outros" é um cômodo eufemismo para tolos e honestos, já que o pobre nunca foi sinônimo ou prerrogativa de integridade. O pobre só é assim chamado - no sentido brasileiro da palavra - o sujeito que ainda não agarrou o primeiro gancho para uma boquinha e apenas porque deve escalar mais níveis "para chegar lá". Mas o fará, se houver oportunidades. A prova disso é que o cafezinho para o guarda de trânsito é garantido por toda a sociedade. Em maior ou menor escala, todos subvencionam a mutreta no país.

Nunca a metáfora do Brasil caiu tão bem quanto o sujeito sobre a bicicleta de circo para não se molhar. Na ausência do Estado, o exasperado pedala como pode.

A gente somos inútil. Ainda.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

O tempo e o mouse



Passei ontem a inteira manhã imersa no meu arquivo morto - coisas do final dos anos 80 para cá - a procurar dados de um antigo contato de trabalho. Em meio a pilhas e pilhas de correspondências, faxes e rabiscos amarelados.

Folhear o registro daquele período precedente a internet parece paradoxalmente remoto e extemporâneo. Ao contrário da velocidade do mouse, a busca requer o manuseio, folha por folha. Cansativo e entediante, se devo confessar. No entanto, o passado é fisicamente tangível, graças a esses papéis, um registro profissional de sangue, suor e vá lá, algumas cervejas de todos estes anos.

Recuperar o passado hoje nos basta um clique. Localizar algo ou alguém dispensa a fadiga do carteiro ou arquivos impressos saídos das gigantescas prensas de Gutemberg. Nem precisamos mais calcular apreensivamente o tempo de um telefonema internacional por medo de uma conta pesada.

Há também redes sociais, através das quais podemos recuperar amizades dispersas ou bisbilhotar vida alheia, o último hobby global. Com o clique, recuperamos do arquivo invisível o passado em imagens e vozes, dispensando relações táteis e intermediários enervantes. Mas podemos cancelá-las no etéreo com a mesma velocidade. E o fazemos, diariamente.

Não sou refratária a toda essa comodidade. Ao contrário, sou infinitamente beneficiada no trabalho e nas relações afetivas; sobretudo por me encontrar fisicamente longe das minhas referências culturais, famílias e amigos. Desfruto também da outra vertente, a globalização - esse mal necessário - , através de vôos econômicos e outros serviços que me ajudam a aplacar emoções retidas pela distância.

Porém, com a nova percepção do tempo, tenho a impressão de que algo tenha sido subtraído da nossa alma. A espera ou a expectativa, por exemplo. Será o preço a pagar pela voracidade que reduz a existência de 20 ou 30 anos em dois segundos.

O que me perturba nesse estranho senso de vazio é que o mouse parece ter banalizado nossas ações. Palavras como nostalgia e saudade não permitem mais margens para ruminações ou ressentimentos, porque o ontem e o hoje perderam a linha confinante. A volatilidade nos tolheu também o direito a devaneios e fantasias. Como aquela emoção que precede a busca nas redes sociais por amizades perdidas ou amores desencontrados. O desejo é aplacado e suprido tão instantaneamente que o prazer se vaporiza para cair novamente no esquecimento.

Mas são apenas ruminações passageiras, enquanto - raios - , ainda continuo a procurar o bendito documento.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Sua Santidade o Encanador II



Se posso divinizar um profissional no panteão dos deuses salvadores da humanidade, este é - enquanto eu viver neste lado do hemisfério - o encanador. Me refiro ao bravo técnico confiante e arguto, que continua a desbravar selvas urbanas e apartamentos, sempre armado de uma chave inglesa e uma boa conversa. Um intrépido, sem temor da crise financeira internacional e de maridos desconfiados.

Este é um ofício do qual não abriria a mão, caso eu pudesse reencarnar numa profissão invejada e com certeira vocação para a riqueza. Renascer num hipotético especulador de Wall Street ou num expert informático de Silicon Valley? Estes precisam de investimento pesado de terceiros e um emaranhado de influências; e ainda, contar com equipes muitas vezes traiçoeiras. Vai que um auxiliar de contabilidade sopre seus segredos a George Soros ou a Steve Jobs ? E qualquer deslize, as perdas são oceânicas.

Já o investimento do profissional solitário se limita a duas trocas de macacão manchado de graxas, meia dúzia de chaves e o principal segredo profissional: o jogo de simulação técnica aliado a um punhado de dialética.

Lamento que o meu bom cobertor de orelha não tenha escolhido a carreira de encanador quando jovem. Se ele possuísse um MBA em hidráulica, a esta altura eu estaria nos mares do sul, tomando água de coco, lendo bons livros e pensando apenas "com que roupa vou à festa hoje à noite". Tudo graças aos apelos descabelados de donas-de-casas atrás de salva-vidas onde se segurar nas pequenas inundações domésticas. E é nesse momento que o encanador faz jus à divinização, ao estender-lhes a mão entre as nuvens celestiais com coros de gospel ao fundo. E cobrar 420 euros por troca de alguns parafusos no registro de água.

Um encanador italiano inteligente é aquele que deixa o seu Lamborghini ou o carro-reserva da família, um Maseratti GranCabrio, discretamente guardados na garagem para não ser contraprodutivo. Chega com o velho furgão amassado e um convincente macacão desbotado. Afinal, os oficiais-leões da Receita italiana aumentaram a guarda nos últimos anos.

Mas suas potenciais e inertes clientes são as doces criaturas, as mulheres. E se elas trabalham fora e nunca ouviram falar de disjuntor ou válvula de registro, a tarifa pela ignorância lhes custará o triplo. E mais alguns extras, conforme a emergência. Sábados e domingos, tarifa quadruplicada, sem a nota fiscal, o que lhe garante a manutenção da sua casa de praia em Seychelles ou os estudos do primogênito na Oxford. As mulheres clientes compreendem, certamente, o que é uma despesa doméstica para um chefe de família, como a do pobre encanador.

Quem sabe eu ainda consiga persuadir meu sobrinho a largar a área médica e convencê-lo a se tornar um encanador.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Bastardos gloriosos


Não vou fazer rodeios. Somos uma nação bastarda que redundamos até nos sobrenomes extensos como um trem. Pronto. Mas tem o aspecto genético positivo nesse abastardamento - uma ressalva para não levar uma paulada - , que o pobre escrivão do cartório certamente não concordaria comigo. Haja espaço no formulário.

Um contador da esquina pode se chamar José Edicleyton Tapajós de Rego Pinotti Soares da Silva Schneider, mas o chamamos de . E ninguém se lembra do resto. Mesmo a balconista da padaria onde tomamos um cafezinho pode carregar uma suposta linhagem de respeito, ou não se chamaria Marineide da Silva Ortiz Soares de Andrade Albuquerque Nakamura De Santis, a simpática . No máximo, Mara, para dar-lhe um pouco de consistência fonética e um mínimo de contrapeso à extensão.

O brasileiro só começou a se interessar por árvore genealógica da família por razões puramente migratórias. Para o efeito de vistos, se entende. E ainda, ganhou vantagens nisso. Com sobrenomes quilométricos - mesmo desconhecendo seus ascendentes, laços e nós cegos de tanta miscigenação - pode apostar em um dos cinco ou mais do que dispõe. Pode ser o visto para Portugal, Espanha, Itália, Japão, Nigéria e até para a nação Xingu.

Quem sabe o Silva que carrega tenha um remoto parentesco por parte do cunhado do tio-avô, que não assumiu a paternidade com a prima da auxiliar da cozinheira-chefe da corte da família Bourbon? E vai que o cônsul espanhol, antes de assinar o visto, identifique a linhagem do Silva, o mecânico do bairro, exatamente no período de domínio espanhol sobre os lusitanos e o coligue a Orleans? Pode vir à luz até um título nobiliar, com direito a herança para brigar, caso perca a oficina mecânica com a crise.

Mas o problema da busca pelos ascendentes não deixa de ser uma odisséia - dada a nossa precária formação escolar - , sobretudo quando devemos descobri-los num determinado contexto da História universal. Afinal, mesmo que a internet nos dê acesso aos tempos de Moisés para chegar à nossa genealogia, mal sabemos situá-la historicamente, já que ninguém se lembra nem menos o ano em que Tiradentes foi à forca sem recorrer à Wikipédia.

Nessa recente corrida por genealogia, descubro que no Brasil, onde vive a maior comunidade japonesa no mundo, revela uma singular estranheza. Ninguém tem um avô pedreiro ou pescador. Todos têm descendência de nobres samurais e de grandes senhores daimyo dos xogunatos que remontam ao período de Nobunaga. Falta descobrir os descendentes de Musashi e Naruto, mas tenho certeza que ainda os encontrarei nos interiores de São Paulo.

Eu? Segundo a minha mãe, parece que tenho algo a ver com o imperador Akihito. Sem falar da homônima indústria japonesa de motos da qual, com um bom advogado, eu possa talvez provar que tenho direito a alguns trocados de herança.