segunda-feira, 15 de junho de 2009

A cultura da "boquinha"



Músicos e poetas brasileiros já cantaram odes à nossa miséria, enxergando nela um lirismo e estética onde cabiam apenas a penúria e resignação de um povo. Subir o morro com a lata d'água na cabeça encerrava em sí o supra-sumo da beleza que só os pobres sabiam evocar. A licença poética permite tudo, claro, quando o tributo é escrito de dentro de um confortável duplex com vista para o mar. Ou numa mesa de boteco com um uísque de 12 anos e uma gorda conta bancária, -quem sabe, garantida até pelo Estado. A pobreza era poética para eles.

Eu também caí nessa um dia. Como qualquer estudante, que se embriaga com teorias de botecos. Mas logo, ví o gingado descer o morro. Pelo direito à igualdade que eu continuo a pregá-lo ainda. Mas ele pretendeu morar ao lado. Esqueceu-se das convicções e descambou para o parasitismo horizontal, no vizinho mais próximo, já que o Estado continua a ignorá-lo. Este, prefere calar a boca distribuindo dinheiro a criar cidadãos.

O que o brasileiro melhor soube aperfeiçoar nestas décadas foi o de buscar uma "boquinha" em qualquer meio. Sem a honra do suor e do trabalho. Se não se candidata para um cargo a vereador numa periferia e se tornar proprietário de castelo, é através de processos judiciais a golpe de gravidez omitida e falsas testemunhas contra a "patroa vilã". Por que se sabe, quem tem mais, tem que ceder. Mesmo que a 'patroa' seja honesta.

A cultura da "boquinha" não apenas aperfeiçoou o mecanismo como o Estado o legitimou às custas do patrimônio de privados, como é o caso de usucapião. É a reversão na escala de valores. O Estado não garante nem menos o que é nosso. O direito do pobre, mesmo com quartas intenções, prevalece sobre o que um cidadão médio com impostos em dia levou anos para construir. Os pobres e os ricos encerram em sí o próprio perdão. Nós no meio, pagamos a conta.

Tanta amargura logo de manhã se deve à esta notícia, que lí há pouco. Os malandros já batem à porta dos intelectuais cobrando o que estes sempre quiseram dividir. Sim, o poeta é um fingidor.
Que dividam seus próprios suores.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Monet e as cores flutuantes

Uma das obras da série "A Ponte Japonesa", de Claude Monet (1840-1926)

O prazer visual encerra em sí um universo tão infinito de beleza - , impossível de exprimir em toda a expansão que a língua possa permitir - , que dispenso desta vez me aventurar a descrevê-lo. Qualquer tentativa seria redundante.

E assim foi ontem a mostra "Monet - O tempo dos nenúfares", no Palazzo Reale de Milão, com 20 de suas obras do Museu Marmottan de Paris e mais 60 ukiyo-e de Hokusai, Hiroshige e gravuras do fotógrafo Kusakabe Kimbei.

Xilogravura "A Grande Onda de Kanagawa" de Hokusai (1760-1849), da série "As 36 vistas de Monte Fuji", presente à mostra
Fotografia pintada de Kusakabe Kimbei (1841-1932) presente à mostra.

Saí muda desta mostra. E compreendí quanto é pobre o meu vocabulário, incapaz de traduzir minhas emoções.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

TAMto faz, o cliente


Por ineficiência do seu site e pela falta de resposta a um e-mail enviado dias atrás, tentei repetidamente ligar à agência local de uma nota companhia aérea brasileira, que opera vôos diretos desta cidade para São Paulo. A longa e torturante gravação em bilíngue me sugeria um dos 9 (nove!) departamentos internos ou um número externo, o abominável 199. Ao preferir o número interno, o suplício para que alguém respondesse foi ainda mais penoso, pois em seguida, e misteriosamente, a ligação caía. Ou faziam cair.

O número precedido por 199, avesso ao 0800, é um estranho anacronismo aderido por algumas empresas, sobretudo as aéreas. Uma tentativa non-sense que coraria de vergonha os mais prolixos dos antagonistas de Adam Smith no distante século 18. O consumidor paga do seu bolso o dobro de tarifa nas ligações para obter informações de seus produtos. Uma estranha lógica de pagar para comprar. E uma barreira preventiva que as protege de clientes petulantes caso o assunto seja espinhoso. Óbvio, não disquei este prefixo. Por princípio.

A terceirização é isso. É um modo de vender o mito da velocidade e eficiência para escamotear a ausência delas. Algumas empresas dão a desculpa de contenção de custos para ancorar-se no bolso alheio. E garantir o prêmio-bônus de seus altos executivos, claro.

Serei apenas eu a sentir nostalgia de interlocutores reais do outro lado da linha? E ainda devo pagar o dobro por isso?

domingo, 7 de junho de 2009

Melão com Presunto cru


O perfume e as cores destas fotos são o prenúncio de um verão abundante de frutas. Paguei apenas €1,20 pelo quilo de melão, e estamos apenas no início da safra. Este ano, a previsão é que supere as 650 mil toneladas festejadas em 2008. Este provém de Mantova, a 150 km a sudeste de Milão e maior região produtora desta fruta.

Pelas cerejas que acabam de chegar às feiras, paguei €2,90 o quilo. Produz-se em todo o país, mas estas, provêm da região de Puglia, bem alí no salto da bota, onde o clima é mais generoso. Daquí a duas a três semanas, estas e outras frutas como pêssegos, morangos e nêsperas terão seus preços reduzidos à metade. E então, virão as melancias gigantescas, de 13 a 15 quilos cada.

O presunto cru? De Parma, naturalmente. O italiano que disputa o duro páreo com o ibérico Pata Negra.

sábado, 6 de junho de 2009

Um a menos


Já morei no mesmo prédio do Bar Estadão, onde serve o histórico sanduíche de pernil, alí no viaduto 9 de Julho, em São Paulo. Foi uma acomodação provisória, por apenas quatro ou cinco meses, cedida por um amigo. Eram os anos 80.

De madrugada, quando a fome apertava, nada me fazia temer a violência noturna. Bastava apenas o elevador, para buscar aquela delícia em meio aos passantes da fauna paulistana.

Nem me lembro qual era o andar, mas do alto da minha janela, eu podia observar a avenida São Luís, tão curta quanto centenária, com maior número de quatrocentões por metro quadrado da cidade. Sem falar da Biblioteca Mário de Andrade, em estilo art-déco, em cuja praça, se acomodavam logo cedo os engraxates e vendedores ambulantes sob a imensa copa de sua figueira.

E ao lado, o histórico prédio da Gazeta Mercantil. De onde às 2 da madrugada, já se ouvia os furgões retirando das suas rotativas os primeiros exemplares, ainda quentes, para ganhar as ruas da cidade. Esta semana, leio que a Gazeta mandou às ruas o seu último número. Não resistiu ao tempo. Deixa de circular após quase 90 anos de existência.

Em simbiose com o sanduíche de pernil, o jornal - aquele em papel - , era um dos elementos que delineavam a feição de São Paulo de que mais gosto. A cidade que nunca para de trabalhar.

Algo mais foi subtraído da minha memória esta semana. É a crueldade do tempo.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

The Untouchable


Espera. Espera...

Tem eleição neste final de semana. Para o Parlamento europeu, mas mandaremos para lá apenas a sua oposição.

Cedo ou tarde aparece um Eliot Ness nesta terra, ninguém é Intocável .


* O refrão "Ridi Pagliaccio" é parte da ópera "Pagliacci", do compositor de ópera lírica e opereta Ruggero Leoncavallo (1857-1919).

terça-feira, 2 de junho de 2009

A fortuna dos incautos


Nascemos com os pés no chão e desastres aéreos impressionam sempre. Um monstro de centenas de toneladas que se sustenta no ar, que enigma. Eu sei, o homem já pisou a Lua e eu ainda a vejo como um conceito, uma abstração envolta em romantismo. Mas, raios, o avião é coisa para comuns-mortais.

Manhã de 14 de novembro 1990. Vôo Alitalia Milão-Zurique

Na manhã daquela data, o aeroporto de Linate em Milão havia se transformado em ringue de batalha entre os passageiros. Encoberto pela densa névoa que costuma formar em outono sobre a região, o aeroporto decidiu paralisar todos os cerca de 40 vôos nacionais e internacionais naquela manhã. Com exceção a dois privilegiados. A casualidade quis que um deles fosse o meu vôo para Paris, de onde horas mais tarde prosseguiria para Tóquio. O outro privilegiado seria para Zurique.

Fazia frequentes viagens entre Milão e Tóquio naquele período, mas aquela era uma das viagens mais urgentes e inadiáveis, que os clientes japoneses não perdoam. Em meio a tapas e ponta-pés da confusão italiana, me ví colocada no vôo errado, aquele para Zurique, de onde queriam que eu fizesse uma conexão-extra para Paris. Com o medo de perder minhas amostras contidas na bagagem - razão daquela viagem - , travei uma luta hercúlea no balcão contra os "espertos" que me precediam.

Somente após chegar a Tóquio é que recebí a notícia. O outro vôo, no qual estava para ser embarcada, caíra nas proximidades de Zurique, matando 46 passageiros. Minha irmã, que então vivia em Milão, já estava prestes a ter um colapso. Por esquecimento ou distração, eu nunca deixava os dados dos meus vôos com ela, razão pela qual a fiz temer pelo pior: o de encontrar o meu nome entre as vítimas, enquanto eu, inconsciente da tragédia, prosseguia a viagem.

Naquele dia, a fatalidade se desviou de mim. É o único canhoto de passagem aérea que nunca joguei fora.