quinta-feira, 12 de novembro de 2009

O sobretudo chinês


Me lembro, como fosse ontem, tudo o que compunha a casa de um velho chinês, a quem meu pai fazia frequentes visitas me puxando pelas mãos. Ainda que a língua portuguesa os acomunasse com dificuldade, ambos recorriam à comunicação mais prática, a escrita, através de ideogramas rascunhados num papel ou desenhados com um graveto no seu jardim.

Como se sabe, a fonética entre o chinês e o japonês é tão semelhante quanto o é entre o português e o tcheco. Se estes possuem o alfabeto em comum, os primeiros têm os ideogramas. A amizade entre ambos prevaleceu entre os meus 7 a 10 anos de idade, na segunda metade dos anos 60.


O velho chinês fora um combativo militante na Manchúria contra o imperialismo japonês. Posteriormente, fora um coronel de Kuomintang, o partido nacionalista sob liderança de Chiang Kai Chek, antes que este se refugiasse à Taiwan e a China fosse definitivamente ocupada por Mao. Fugira com a esposa para o Brasil com o que restou do espólio comunista. De sua esposa, minha memória se mantém muito viva.


Era uma senhora muito refinada nos gestos e na economia de palavras. O que chamava a minha atenção infantil eram seus pezinhos minúsculos, quase do tamanho dos meus de então. Só depois de adulta eu soubera que se tratava de membro da alta corte pré-revolucionária. Seus pezinhos denunciavam a secular tradição das mulheres nobres. Quanto menores os pés, mais alta a castidade física - sinônimo de graça e beleza até o início do século 20. Certamente proviera de ambiente cujo cotidiano era circundado por criados até para se deslocar no interno doméstico. Sabe-se lá que odisséia tenha passado o casal para fugir das garras ostensivas de Mao, até chegar a outro lado do planeta.


Como no ditado popular, os lobos perdem os pelos mas não o vício. A remanescente aristocrata não renunciava aos pequenos luxos naquela pacata zona rural paulista dos anos 60. Não sabia cozinhar ou cumprir as menores tarefas domésticas. Me lembro, com muita lucidez, de sua imponente cristaleira, cuja estrutura de madeira era minuciosamente entalhada em alto relevo com dragões e motivos floreais, que remetiam à pompa da corte imperial que conhecemos nos filmes. Dentro dela, inúmeras porcelanas, cuja milimétrica espessura da refinada manufatura chinesa traduzia, mesmo para uma criança como eu, a condição social em que vivera até a chegada ao Brasil.


Numa das inúmeras visitas que meu pai fizera ao amigo - sempre comigo a tira-colo - o velho chinês retirou do imponente baú de couro, seu velho uniforme militar, que hoje faria estremecer de fúria qualquer animalista adormecido. Mostrou, com um certo orgulho, um velho sobretudo militar de lã, enquanto "conversavam" em ideogramas rabiscados sobre um caderno. Vestira, paradoxalmente, na guerra russo-japonesa na Manchúria, para se proteger do frio siberiano ao lado de russos, contra os japoneses.

O sobretudo, longo até o tornozelo para os seus um metro e oitenta ou mais de altura, mereceria um capítulo à parte. Seu forro era inteiramente confeccionado com caudas de tigre - sabe-se lá quantos tigres foram sacrificados - para suportar a temperatura siberiana das campanhas militares.


Me lembro, com grande lucidez, que cheguei a tocar o forro daquela vestimenta com as mãos trêmulas, num misto de incredulidade e compaixão. Naturalmente o sobretudo era reservado apenas aos militares de alta hierarquia como ele. Tal experiência me leva a crer, com grande convicção, de que aquela fora a minha primeira e última rara ocasião em que tocara várias caudas de tigres, sem o risco de ser inteiramente engolida por eles. E sob o calor de um país tropical, tão distante no tempo e no espaço daquele estranho contexto.


Mas o que ficou na minha memória foi a amizade entre ele e meu pai. Além da diferença etária que os distanciava, havia ainda o muro linguístico-verbal e o embaraçoso paradoxo de suas nacionalidades: as razões ideológicas de suas respectivas nações no conflito, culminadas em guerras. A amizade havia extrapolado a semântica destas razões e imposto a distinção dos ideiais de uma nação do individual.

O velho chinês falecera quando eu era ainda uma adolescente. Meu pai faleceu em 1996, com 80 anos de idade, num quarto abarrotado de livros, todos já empoeirados e intactos, à beira de sua morte. Morrera com ideais pacifistas que sempre tivera, ainda que ele mesmo fosse filho de um militar japonês, que combatera na Manchúria contra os chineses.





6 comentários:

Adrina disse...

Talvez a intolerância dos dias modernos (que sempre houve, na verdade, mas que se exarceba pelo anonimato) impossibilitasse o contato do seu pai com o velho chinês, impedindo ainda que você contasse essa linda história pra gente.

LuMa disse...

Sabe aquele princípio maniqueísta de Bush filho, do "conosco ou contra nós"? Tenho lido tantos artigos e blogs que te exigem a tomar uma posição perante o "Mal absoluto" e o "Bem absoluto". Uma estranha lógica do "favor ou contra", não vale ficar de fora...

Paola disse...

Por aqui essas histórias já foram esquecidas, mas as amizades inusitadas continuam firmes, lá prás bandas da 25, os judeus e muçulmanos que dividem espaço com o baiano é bem comum!
Fico imaginando a alegria do velho chinês, poder mostrar seu tesouro para os interessados!

bj

Paola

Nei disse...

Eu me comunico com alguns chineses com dicionario japones/port e kanjis e da certo.

Massa essa historia do sobretudo. Sobretudo para quem lida com linha e agulha e afins.

Anônimo disse...

Ainda bem que usaram rabos de tigres para se aquecerem no inverno e nao como afrodisiaco!
(como chifres de rinocerontes, barbatana de tubarao, patas de urso e bilis de cobra)!!!!

(desculpe minha falta de sensibilidade) !

Seu texto continua sendo lindo!

Beijinhos
Anna

LuMa disse...

Paola, Nei e Anna:

Não é incrível como em uma geração a humanidade tenha aprendido a respeitar os animais? Digo, ao menos aparentemente?