sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Luzia e seus ídolos


Num desses acidentes de percurso no You Tube, clicando aleatoriamente aquí e alí, me esbarrei dias atrás com um vídeo de Reginaldo Rossi. Aquele mesmo, o do "garçon", o exuberante cantor de música popular, que emanava sexo por todos os poros e por cima de suas calças de Tergal. O meu sorriso se iluminou, claro.

Passei meus finais de adolescência ouvindo programas populares de rádios AM. À exaustão. Tudo por conta de Luzia, a doce criatura que muito ajudou minha mãe e nas nossas tarefas domésticas. Ela nunca começava o dia sem sintonizar seu radinho azul de pilha, que a acompanhava por toda a casa. O radinho só emudecia mesmo era na hora do almoço, para nos dar um pouco de fôlego com o noticiário de tevê.

Eu vivia a minha fase de mineirismo trancafiada no quarto, mas o som externo de Luzia não me concedia tréguas. Seus robertoleais e gretchens prevaleciam sobre meus lôborges e venturinis. Mesmo sob todos os protestos, as tardes eram um monopólio de Luzia.

Após o almoço iniciciava o imperdível programa do 'lindão' Eli Corrêa. Aquele que saudava os ouvintes com o inconfundível refrão "Ooooooooooi, geeeeeeeentiiiiii", seguido de algum jingle. O seu público fiel não tinha ouvidos para os comerciais de xarope, palhinha de aço ou de sabão. Queria logo que o locutor rodasse suas dedicações com odairjosés e amadobatistas, os hits do momento.

Anos mais tarde, ao ingressar na faculdade, me ví realizando a fantasia que inundava as tardes de Luzia. Com frequência, esbarrava em alguns de seus ídolos nos elevadores da faculdade, em cujo edifício abrigava também o auditório da TV Gazeta. Cantores que já chegavam vestidos à caráter, com seus sapatos de plataforma e correntes de ouro, para ganhar alguns minutos de visibilidade fora do limitado ambiente de AMs. Também cantores anônimos, que dalí a pouco, seriam esquecidos nos palcos de churrascarias de estradas.

Os olhos de Luzia brilhavam a cada promessa minha, que acabei por não cumpri-la. A de acompanhá-la ao auditório daquele programa popular. É que logo em seguida, ela nos deixava para retornar à zona rural, onde viviam seus pais. Por culpa da gravidez de um malandro que não a merecia.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

O bom milanês


Aprecio muito o verdadeiro cidadão milanês, com sua inata discrição e sobriedade. Eles são poucos em Milão. Avesso a frugalidades e rodeios de palavras, a sua aparente indiferença com vizinhos é muitas vezes confundida com esnobismo, mas são os aspectos desse italiano profano que mais me faz sentir à vontade.

É verdade que a mentalidade milanesa nem sempre agrade aos italianos de outras regiões, ao fulminá-la como 'fria' ou 'individualista', para engrossar a lista dos lugares-comuns. São certamente atribuições superficiais sem nenhum ranço, que todos os centros urbanos, industriais e financeiros recebem em comum, cada qual nos seus confins. Eu as corrijo como pragmática e sensata, que preza a sua individualidade sem descer no individualismo. Um bom milanês, em poucas palavras, não se vale de retóricas e nem se esforça a recolher belos adjetivos para sí.

Pessoalmente o meu critério de simpatia nunca se baseou na alegria ou no sorriso de um povo. Prefiro a direta sinceridade e disciplina do cumprimento de palavras a profusão de alegria e eloquência evasiva. Abraços efusivos e risadas em altos decibéis conquistam apenas nossas impressões imediatas, o que nem sempre se traduzem em respeito. Suspeito sempre dos superlativos.

Estendo esta mesma impressão dos milaneses aos japoneses de Tóquio, que por razões profissionais mantenho maior contato que das demais cidades japonesas. Não porque a cidade seja mais rica, afluente e cosmopolita do Japão. Me refiro ao velho e bom japonês dos tradicionais bairros de Tóquio, que por razões que só culturas antigas são capazes de manter naquele vórtice humano, ainda conserva com sobriedade os bons princípios de usos e costumes nas relações humanas. Tudo isso com o devido respeito e distância.

Financeiramente, meus clientes de Tóquio nunca renderam alguma vantagem significativa para o meu bolso. Com algumas exceções, quase todas as transações comerciais com eles foram bastante modestas, de dimensão humana, suficientes para eu pagar minhas contas e impostos. Em contrapartida, tive muitas compensações com eles. A certeza da relação duradoura e contínua, baseada na confiança recíproca de palavras. E nem sempre ditas. Ao longo dos anos, muitos deles mudaram de setor devido à crise, mas ainda mantemos relações cordiais como se nada tivesse mudado.

Será uma casualidade, mas não obtive a mesma satisfação com alguns profissionais de Osaka, cidade igualmente grande, cuja cultura se distingue dos demais japoneses pela grande desenvoltura e uma escancarada alegria. A antítese de Tóquio, em tantos aspectos. Com eles concluí vários furos na água, após entusiasmantes trocas de cartões de visita, muitos souvenirs de presente e promessas em pompa magna de grandes negócios juntos. Palavras. Simplesmente palavras.

Falei disso tudo apenas porque levei a enésima paulada na cabeça ontem, de um novo fornecedor de uma profunda região italiana, com um dos índices mais elevados de desemprego do país, conhecida também pela sua alegria e de "gente che sa vivere". No trabalho, pouco me importa a alegria; me interessa é o peso da responsabilidade.

Bem que eu havia desconfiado da excessiva simpatia e falação durante os ricos jantares antes do contrato. Iniciou com delongas na entrega de pedidos, desculpas esfarrapadas e despudoradas atribuições de culpa a terceiros. Até o cancelamento aleatório do pedido, sem nenhum aviso prévio. Mas não um pedido de desculpas. O meu cliente japonês ficará desfalcado da coleção de calçados este ano.

Seis meses de promessas para acabar com um furo na água. Viver com alegria sim. Viver de alegria, só os humoristas.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Boteco privée da Luma - Menu 4

Retomei o bom astral.

Voltei radiante de uma visita cardiológica ontem. Se sabe, a esta altura da segunda idade, o receio de que o médico me corte o vinho e a comidinha de que tanto gosto é atroz, de tirar o sono. A abnegação na gula deve ser um daqueles casos mais trágicos que um ser possa suportar. Enfim, após uma enervante espera, o resultado diz que o meu coração está tudo em ordem, e voltei feliz para sempre.

Para festejar, reabrí o meu boteco privée. Claro, é uma traição imperdoável com o meu cardiologista, preparando logo estes camarões fritinhos, provenientes do Pacífico, das águas tailandesas. Versão bem mais barata que os camarões do mar saqueado, explorado e saturado do Mediterrâneo.


E tem estas anchovetas cruas, presentes ao menos a cada quinzena sobre a minha mesa, temperadas apenas com sal, limão siciliano, pimenta-do-reino e azeite extra-virgem. E estas não têm contra-indicações. A prova disso é que os seus maiores devoradores, na região de Puglia - bem alí no salto da bota - , vivem com muita saúde.

Confesso, renuncio ao sashimi e wasabi de qualquer peixe por estas anchovetas cruas, cujo sabor do mar nos enche de alegria por todo o céu da boca, até chegar ao nosso cérebro. E tudo acompanhado por um vinho branco comum da região de Marche; nada de especial, mas de boa qualidade e com a garantia de um IGT, - Indicação Geográfica Típica. O vinho me custou apenas € 2,15 a garrafa.

Com a garantia do resultado médico, sei que o meu boteco privado seguirá em frente, e por enquanto, não se prevê nenhum risco de falência.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Desperdício


Estava para postar sobre essa 'comidinha do bem', da foto abaixo, preparada no último domingo com a reciclagem de todas as sobras da noite anterior, quando coincidentemente me deparei com dois artigos publicados hoje, relacionados ao tema.



O primeiro discute o desperdício de comida no mundo, no fórum da BBC Brasil. O outro, publicado no jornal italiano La Repubblica, cita o caso de uma pequena cidade australiana de Bundanoon, com apenas 2 mil habitantes, que decretou a proibição da venda de água mineral na cidade. Os números pelos quais a cidade se baseou para a drástica decisão revelam a incoerência da devastadora indústria de consumo e o círculo vicioso no qual todos somos cúmplices, ao repetir a máxima popular "minha contribuição não faz nenhuma diferença".

Segundo o artigo, é necessário 81 milhões de litros de petróleo e 600 bilhões de litros de água para produzir 154 bilhões de garrafas plásticas consumidas hoje. Um paradoxo, pois 1 litro de agua mineral que compramos na esquina, necessitou de outros 4 litros de água apenas para produzir o seu recipiente. Sem falar da crescente expansão e lucros das empresas engarrafadoras, que nos impõem este bem natural e vital como fosse um 'produto' ou até uma grife.

Ao diagnosticar problemas renais há cerca de 8 anos, me incentivei a cortar o consumo de água engarrafada pelo de torneira, como solução mais racional e consciente para a terapia. Eu precisava tomar ao menos 2 litros de água por dia. O tratamento e distribuição da água encanada de Milão são frequentemente certificados como excelentes - iguais ou até superiores que muitas marcas difundidas - , razão a mais para que eu me liberasse de vez do remorso com a multiplicação de garrafas no meu lixo. Era um non-sense suar sete camisas para buscar minhas provisões no supermercado da esquina por um bem que possuo em casa e enriquecer as empresas de PETs e engarrafadoras. E ainda, ter que descer continuamente com sacos gigantescos de lixo para o cestão diferenciado do condomínio.

O artigo me estimulou a recalcular minha pequena mudança doméstica. Nestes anos de terapias renais, deixei - surpreendentemente - de produzir de 3 a 5 mil litros plásticos em casa. E num cálculo inverso, a indústria produtora de Pets economizou 20 mil litros de água para produzir o meu lixo. Quem diz que o nosso microcosmo não faça o macro?

Bem, sobre a comidinha da foto acima deixo para a próxima...

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Berlim Oriental III



Já escreví precedentemente aquí sobre a minha rápida experiência em Berlim Oriental, antes da queda do muro, mas só agora, quando o fato histórico fará 20 anos em novembro próximo, percebo a crueldade da passagem do tempo. O tempo sobre os ombros é tirano, e nos tenta subtrair energia e vitalidade, sem remorsos. Mas foi naquela viagem que aprendí um pouco mais da vida, para alcançar a idade realmente adulta.

Quando ainda era uma mera universitária no Brasil - combinada a todos os excessos - , achava que as nossas convicções fossem imunes ao tempo. Mas só ele - sempre ele - soube me ensinar que as convicções de ontem podem ser tolices de hoje. Me formei e continuei a acreditar em papos de botecos por muito tempo, até eu conhecer ambos os lados do muro. Que ironia, me revelei como aquela que prefere a ala dos que querem o conforto. No seu vasto entender.

Quando visitei Berlim Oriental, com um visto de apenas 24 horas - era o máximo de tempo que os socialistas concediam - , ainda arrastava a crença de que a divisão de bens fosse o ideal da humanidade, mesmo observando tanta melancolia e tristeza nos olhares dos próprios berlinenses orientais.

Não é necessário que hoje, ao compreender a ilimitada insaciabilidade do homem, os neoliberais me dêem alguma lição de política econômica. Compreendí já naquela viagem, com grande atraso, que a igualdade não existe. E nem o desejam. Enquanto o homem for aquele bicho que nós estamos carecas de saber quem seja.

domingo, 20 de setembro de 2009

Sua Excelência, o Queijo


Queijos. Muitos queijos. A bem da verdade, um mar de queijos. De todos os tipos e proveniências. Uma covardia para o meu estômago, indignado com a própria capiência.

Nosso mergulho nas obras-primas criadas por aquelas doces criaturas - vacas, ovelhas e cabras - , ocorreu ontem, na pequena cidade de Bra, situada sobre uma das inúmeras colinas circundadas por vinhedos, que caracterizam a região de Piemonte. Trata-se da feira bienal Cheese 2009, organizada pela Fundação Slow-Food italiana, que este ano reuniu 50 stands e 186 bancas de várias regiões da Itália e do mundo. E o melhor, com direito a degustação dos produtos e participação em vários eventos paralelos, como o de enologia, gastronomia, música e muitas, muitas palestras.


Por todo o dia percorremos, stand por stand, com o 'ingrato' trabalho de prová-los antes de decidir - entre centenas de variedades -, o que traríamos para casa. Oh, quanto foi 'penoso' ter que saborear brousse francês de cabra e pulltost norueguês; ou decidir entre cheddar 18 meses irlandês e o pecorino infossato, queijo de saco enterrado sob frias terras de Abruzzo. Não bastasse a dura tarefa, tive que entremeá-los com goles de barolo e nebbiolo piemonteses, que chateação...

Ricota búlgara de cabra , cuja tradição era processada e maturada no
estômago do mesmo animal, banida hoje pelas novas leis sanitárias.

O saldo deste passeio? Nove tipos de queijos na sacola para retomar os 200 quilômetros de estrada para a casa. Com a leve impressão de que 200 pessoas haviam tirado os sapatos dentro daquele carro.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

A fila anda

Costumo medir os sinais dos tempos no calhamaço de panfletos que entope a minha caixa de correspondências.

Empréstimos sem fiador "a juro inócuo"; encanadores de emergência "sem cobrança de taxa de saída"; conserto de dentaduras "em apenas 24 horas"; excursões gratuitas em ônibus de luxo para fábrica de móveis X "sem compromisso de compra" (mas parada e almoço obrigatórios no Restaurante Y) e outras apelações afora.

O barômetro é bastante rudimentar, é verdade, sem nenhum embasamento científico. Mas àqueles cujos índices do governo ou de agências econômicas parecem apenas números estatísticos dirigidos aos banqueiros e grandes empresas, estes panfletos podem servir de referência ao estado real da crise. Ao menos para nós, o 'povinho'.

Numa economia tradicional e refratária como a italiana, recentemente saída dos crivos estatais e baseada em pequenas empresas - quase sempre de gestão familiar - , os novos serviços fazem, sim, grande diferença. O da percepção de quanto estamos imersos na crise. E isso fere até a identidade cultural italiana, atropelada pela repentina liberalização de mercado e concorrência, e pela necessidade de revisão dos orgulhos nacionais.

Quando me estabelecí neste país, há mais de 20 anos, era quase impensável que uma pizzaria fizesse entregas a domicílio. "Pizzas são boas sobre a mesa de uma pizzaria", dizia a grande maioria defensora da boa família cristã-tradicional-ortodoxa. Como adepta do 'slow-food', concordo plenamente com a tal filosofia, se isso não transformasse o mercado italiano num feudo de província em contraste com o resto do mundo.

Me lembro, ainda hoje, - e foi no final dos anos 80 - que o meu aparelho de fax se emperrou justamente num caso de emergência e tive que recorrer ao serviço externo para enviar um documento a Miami. O documento me fora enviado inicialmente do Japão, para que eu posteriormente repassasse a Miami, para completar uma transação comercial.

Percorrí papelarias e agências telefônicas, até descobrir que somente o Correio italiano - mas então apenas a agência- matriz da cidade - fazia o serviço de envio de faxes. Dentre 10 guichês, apenas um funcionava. E aquele único funcionário público-bufão ainda se lamentou com a minha presença, pois a minha petulância o distraiu da leitura do jornal " La Gazzeta dello Sport". Irritado por ter que me 'servir', ainda tentou me intimidar em altos decibéis para que eu retornasse mais tarde, porque "agora estou ocupado". Ao final da discussão, o funcionário ainda teve o caradurismo de afirmar que naquela agência 'não enviava fax a Miami' (!), por razões técnicas!

Mas esta é apenas lembrança de uma Itália que renunciava à herança craxiana pelo berlusconismo, não fosse o pequeno intervalo-escândalo das operações 'mãos limpas' do bom magistrado italiano. Não fosse a internet hoje, é possível que eu me encontrasse em Cariri d'Oeste, trabalhando em minha horta, longe do estresse que comporta uma transação comercial.

De volta aos panfletos que inundam a minha caixa de correspondências, noto que hoje, a culpa aos bodes expiatórios de turno - "estes chineses falsificadores" e trabalhadores extracomunitários - já não encontra um interlocutor que o rebata ou compartilhe da mesma opinião, senão na mídia pró-Berlusconi. Encontrar um culpado externo pela crise não cola mais. O bolso dói, e a urgência de trabalhar e concorrer não dá vasão às discussões inúteis. Finalmente eu vejo a fila andar.

* Mas o comércio, bancos e instituições continuam a fechar na hora do almoço...