
Seu Pedro, o português do armazém, a duas casas depois da minha, era conhecido naqueles quarteirões por "Pedroca, o mão-de-vaca". O apelido não parecia ofendê-lo. Afinal, quem o chamava assim eram apenas os inadimplentes, aqueles que compravam na caderneta e continuavam a não liquidar suas contas depois do dia 10 do mês.
Naquele início dos anos 70, a vida no meu bairro carregava ainda aquela aura familiar e vigilante, onde todos conheciam quem era quem entre os habitantes. Qualquer novo forasteiro que chegasse com o caminhão de mudança já se tornava o argumento da semana. O açougueiro, o padeiro e as janeleiras-sentinelas se proclamavam porta-vozes da ficha completa do novo morador.
Naquele início dos anos 70, a vida no meu bairro carregava ainda aquela aura familiar e vigilante, onde todos conheciam quem era quem entre os habitantes. Qualquer novo forasteiro que chegasse com o caminhão de mudança já se tornava o argumento da semana. O açougueiro, o padeiro e as janeleiras-sentinelas se proclamavam porta-vozes da ficha completa do novo morador.
Seu Pedro, desconfiado e cauto como era, obtinha logo o currículo do chefe de família recém-chegado para decidir o crédito na caderneta de compras do seu armazém. "Ora, pois, pois, só vendo fiado se estiver empregado na carteira", era o seu mote, enquanto alisava o espesso bigode escuro. Sim, ele reconfirmava o estereótipo do português bigodudo sem nenhum embaraço.
Minhas amiguinhas e eu éramos freguesas pontuais do seu Pedro, ainda que o nosso consumo não alterasse em nada na sua liquidez. Talvez por nossas míseras aquisições, nunca nos concedeu um sorriso - mesmo que esvaziássemos todas as moedas dos nossos cofrinhos - , mas conhecia por bem a honestidade e pontualidade no pagamento de nossas famílias.
Era ele quem cedia na caderneta as varetas e o papel celofane para as nossas pipas. A Jorginho, o melhor dos seus pequenos fregueses, vendia a farinha. Quilos dela para a cola. Afinal, Jorginho detinha o monopólio com a venda do seu infalível cerol e turbinadas pipas naquele bairro. Por tabela, o tino comercial de Jorginho lhe incrementava a venda de varetas (e o troco de balas). Furtivamente, o terá eleito como melhor garoto-propaganda do seu velho armazém. Mas o que lhe importava é que nossas famílias saldassem pontualmente as compras no dia 11 do mês. Incluindo aí nossas jujubas, dadinhos Pingos de Leite e doces de abóbora em forma de coração.
E era naquele armazém - um microcosmo dos carrefours de hoje - abarrotado de panelas, cereais, fumos de corda e doces de validade duvidosa que nós - mesmo sob o olhar inquisidor - , nos entregávamos ao indescritível prazer de afundar as mãos nos cereais contidos em diversas caixas divisórias, das quais pesava e vendia por quilo. A mesma satisfação de Amelie Poulain, na cena em que ela repete o gesto no balcão do quitandeiro-resmungão. A censura de seu Pedro com as nossas brincadeiras nada tinha com a higiene e respeito a outros clientes. Simplesmente não queria que puséssemos as mãos nas suas mercadorias. Justíssimo.
Anos mais tarde, me mudei para o centro da cidade, onde não havia mais nenhum quitandeiro ou armazém na mesma calçada. Apenas escritórios e construções para a verticalização da cidade. O período coincidia com a chegada de grandes redes de supermercados no país, e posteriormente, quando me ví adulta, todos os produtos de consumo já estavam a caminho da digitalização, resumidos em códigos de barra. Terminava alí a lembrança da relação tête-à-tête entre o comerciante e o pequeno consumidor.
Me lembrei ontem do "Pedroca, o mão-de-vaca", ao pagar uma compra num supermercado de rede francesa instalada neste bairro milanês, onde vivo. Semanalmente me deparo com um novo caixa, e ontem, não foi diferente. Ao ser advertido que eu recebera o troco errado, o anônimo caixa me fulminou com olhar desconfiado. Ao perceber o próprio erro, apenas franziu a testa resmungando algo em dialeto sulista, aborrecido com a perda de seu precioso tempo. Mudo, me devolveu com gestos bruscos o valor restante, sem me dirigir os olhos ou uma palavra de desculpa.
A memória do seu Pedro me fez sorrir, ao lembrar que no fundo, a sua honestidade e integridade suplantavam largamente a reputação de rabugice e avareza. Ao menos nos dirigia pelo nome e nos tratava com cortesia. Ainda que nos oferecesse sempre balas como troco.
Minhas amiguinhas e eu éramos freguesas pontuais do seu Pedro, ainda que o nosso consumo não alterasse em nada na sua liquidez. Talvez por nossas míseras aquisições, nunca nos concedeu um sorriso - mesmo que esvaziássemos todas as moedas dos nossos cofrinhos - , mas conhecia por bem a honestidade e pontualidade no pagamento de nossas famílias.
Era ele quem cedia na caderneta as varetas e o papel celofane para as nossas pipas. A Jorginho, o melhor dos seus pequenos fregueses, vendia a farinha. Quilos dela para a cola. Afinal, Jorginho detinha o monopólio com a venda do seu infalível cerol e turbinadas pipas naquele bairro. Por tabela, o tino comercial de Jorginho lhe incrementava a venda de varetas (e o troco de balas). Furtivamente, o terá eleito como melhor garoto-propaganda do seu velho armazém. Mas o que lhe importava é que nossas famílias saldassem pontualmente as compras no dia 11 do mês. Incluindo aí nossas jujubas, dadinhos Pingos de Leite e doces de abóbora em forma de coração.
E era naquele armazém - um microcosmo dos carrefours de hoje - abarrotado de panelas, cereais, fumos de corda e doces de validade duvidosa que nós - mesmo sob o olhar inquisidor - , nos entregávamos ao indescritível prazer de afundar as mãos nos cereais contidos em diversas caixas divisórias, das quais pesava e vendia por quilo. A mesma satisfação de Amelie Poulain, na cena em que ela repete o gesto no balcão do quitandeiro-resmungão. A censura de seu Pedro com as nossas brincadeiras nada tinha com a higiene e respeito a outros clientes. Simplesmente não queria que puséssemos as mãos nas suas mercadorias. Justíssimo.
Anos mais tarde, me mudei para o centro da cidade, onde não havia mais nenhum quitandeiro ou armazém na mesma calçada. Apenas escritórios e construções para a verticalização da cidade. O período coincidia com a chegada de grandes redes de supermercados no país, e posteriormente, quando me ví adulta, todos os produtos de consumo já estavam a caminho da digitalização, resumidos em códigos de barra. Terminava alí a lembrança da relação tête-à-tête entre o comerciante e o pequeno consumidor.
Me lembrei ontem do "Pedroca, o mão-de-vaca", ao pagar uma compra num supermercado de rede francesa instalada neste bairro milanês, onde vivo. Semanalmente me deparo com um novo caixa, e ontem, não foi diferente. Ao ser advertido que eu recebera o troco errado, o anônimo caixa me fulminou com olhar desconfiado. Ao perceber o próprio erro, apenas franziu a testa resmungando algo em dialeto sulista, aborrecido com a perda de seu precioso tempo. Mudo, me devolveu com gestos bruscos o valor restante, sem me dirigir os olhos ou uma palavra de desculpa.
A memória do seu Pedro me fez sorrir, ao lembrar que no fundo, a sua honestidade e integridade suplantavam largamente a reputação de rabugice e avareza. Ao menos nos dirigia pelo nome e nos tratava com cortesia. Ainda que nos oferecesse sempre balas como troco.