quarta-feira, 16 de setembro de 2009

A fila anda

Costumo medir os sinais dos tempos no calhamaço de panfletos que entope a minha caixa de correspondências.

Empréstimos sem fiador "a juro inócuo"; encanadores de emergência "sem cobrança de taxa de saída"; conserto de dentaduras "em apenas 24 horas"; excursões gratuitas em ônibus de luxo para fábrica de móveis X "sem compromisso de compra" (mas parada e almoço obrigatórios no Restaurante Y) e outras apelações afora.

O barômetro é bastante rudimentar, é verdade, sem nenhum embasamento científico. Mas àqueles cujos índices do governo ou de agências econômicas parecem apenas números estatísticos dirigidos aos banqueiros e grandes empresas, estes panfletos podem servir de referência ao estado real da crise. Ao menos para nós, o 'povinho'.

Numa economia tradicional e refratária como a italiana, recentemente saída dos crivos estatais e baseada em pequenas empresas - quase sempre de gestão familiar - , os novos serviços fazem, sim, grande diferença. O da percepção de quanto estamos imersos na crise. E isso fere até a identidade cultural italiana, atropelada pela repentina liberalização de mercado e concorrência, e pela necessidade de revisão dos orgulhos nacionais.

Quando me estabelecí neste país, há mais de 20 anos, era quase impensável que uma pizzaria fizesse entregas a domicílio. "Pizzas são boas sobre a mesa de uma pizzaria", dizia a grande maioria defensora da boa família cristã-tradicional-ortodoxa. Como adepta do 'slow-food', concordo plenamente com a tal filosofia, se isso não transformasse o mercado italiano num feudo de província em contraste com o resto do mundo.

Me lembro, ainda hoje, - e foi no final dos anos 80 - que o meu aparelho de fax se emperrou justamente num caso de emergência e tive que recorrer ao serviço externo para enviar um documento a Miami. O documento me fora enviado inicialmente do Japão, para que eu posteriormente repassasse a Miami, para completar uma transação comercial.

Percorrí papelarias e agências telefônicas, até descobrir que somente o Correio italiano - mas então apenas a agência- matriz da cidade - fazia o serviço de envio de faxes. Dentre 10 guichês, apenas um funcionava. E aquele único funcionário público-bufão ainda se lamentou com a minha presença, pois a minha petulância o distraiu da leitura do jornal " La Gazzeta dello Sport". Irritado por ter que me 'servir', ainda tentou me intimidar em altos decibéis para que eu retornasse mais tarde, porque "agora estou ocupado". Ao final da discussão, o funcionário ainda teve o caradurismo de afirmar que naquela agência 'não enviava fax a Miami' (!), por razões técnicas!

Mas esta é apenas lembrança de uma Itália que renunciava à herança craxiana pelo berlusconismo, não fosse o pequeno intervalo-escândalo das operações 'mãos limpas' do bom magistrado italiano. Não fosse a internet hoje, é possível que eu me encontrasse em Cariri d'Oeste, trabalhando em minha horta, longe do estresse que comporta uma transação comercial.

De volta aos panfletos que inundam a minha caixa de correspondências, noto que hoje, a culpa aos bodes expiatórios de turno - "estes chineses falsificadores" e trabalhadores extracomunitários - já não encontra um interlocutor que o rebata ou compartilhe da mesma opinião, senão na mídia pró-Berlusconi. Encontrar um culpado externo pela crise não cola mais. O bolso dói, e a urgência de trabalhar e concorrer não dá vasão às discussões inúteis. Finalmente eu vejo a fila andar.

* Mas o comércio, bancos e instituições continuam a fechar na hora do almoço...

2 comentários:

Adrina disse...

Lu, eu leio o que você escreve sobre a Itália e aquele país de sonho vai se apagando aos poucos na minha ilusão, mas isso não é ruim, não. É o que me traz de volta à terra, me mostrando que onde houver "gente", teremos problemas.
Off-topic: Minha mãe vem me visitar daqui uns dias. Vou providenciar a canjiquinha, que a moela eu compro fresca. :)

LuMa disse...

Hahaha, Adrina, mas a Itália é bela por isso! Vc tem razão, e os próprios italianos repetem o refrão "tutto il mondo é paese", de que em todos os lugares, os vícios e virtudes são iguais. O meu problema não se refere à sua cultura, história e o belo modo de viver, mas apenas na condição de consumidora. A cultura de 'servir' um cliente é ainda um grande problema para todos e claro, isso se reflete até na economia do país. Se um vendedor ou funcionário tratar mal o cliente e ainda fechar as portas no almoço (normalmente das 12:30 às 15 hs), é claro que fica difícil concorrer com economias pujantes como a China ou enfrentar a própria globalização...
PS: O friozinho está chegando aquí e acho que vou repetir a canjiquinha tbém. Beijos