Minha amiga acaba de me mandar um e-mail no qual conta, entre outras coisas, de que vira num noticiário sobre inundações que afligem o Brasil, um sujeito que andava em meio a rua alagada em bicicleta de circo, aquela com rodas e selim altos para não se molhar.
Não entrou em detalhe e nem me ilustrou a situação, mas fiquei imaginando a cena galhofa desse sujeito, um representante do inesgotável senso de ironia e humor que caracteriza o país até em situações limites. Não resisti rascunhar um pouco de pseudo-sociologia de escrivaninha sobre o ser brasileiro.
Temos uma vocação ilimitada - uma patologia congênita, quase - para ser indulgentes com os poderes. Poderes de todos os números, gêneros e graus. Protestamos e esperneamos publicamente contra o estado das coisas. Mas apenas na mesa de bar. A dialética do direito, dever e cidadania se inflama apenas naquele estreito espaço entre o balcão e a mesa de PVC. Um cantinho onde cada um defende teses salvacionistas - alguns buscam teorias nos gregos, outros até na vitória do Corinthians - por um país livre de corrupção, impunidade e políticos com cuecas e meias cheias de dinheiro.
Quando esvazia-se a garrafa e é hora de voltar para a casa, o entusiasmo por um país melhor retoma a apatia. A resignação só não cai por terra ao encontrar por acaso o Alvinho, primo de um assessor de um deputado, de cujo partido pouco se lembra, que lhe confidencia que "o homem vai chegar lá, e quando ocupar a poltrona, te dou um toque por aquela vaga".
O crime da elite política discutido minutos antes na mesa passa então a ter uma conotação mais branda. O dinheiro na meia passa a ser uma involuntária fraqueza humana e a visão da corrupção se converte em contravenção, um cartão-amarelo, já que promessas para escalar a pirâmide o torna cúmplice dos mesmos males.
A indulgência brasileira nasce nessa barganha. Há aqueles que, distante dos bares, acreditam fazer parte da outra margem do rio, os que direta ou indiretamente supõem ter afinidade com o poder. Se não é um cunhado assessor de um deputado que conta, há um primo que trabalha no Tribunal ou na Receita a dar aquele jeitinho, de colocá-los no contingente intermediário entre o cidadão comum e o poder estratosférico de Brasília.
O emaranhado de influências e cumplicidade nessa massa intermediária jamais poderia render protestos. É que espera-se sempre que os outros o façam. "Outros" é um cômodo eufemismo para tolos e honestos, já que o pobre nunca foi sinônimo ou prerrogativa de integridade. O pobre só é assim chamado - no sentido brasileiro da palavra - o sujeito que ainda não agarrou o primeiro gancho para uma boquinha e apenas porque deve escalar mais níveis "para chegar lá". Mas o fará, se houver oportunidades. A prova disso é que o cafezinho para o guarda de trânsito é garantido por toda a sociedade. Em maior ou menor escala, todos subvencionam a mutreta no país.
Nunca a metáfora do Brasil caiu tão bem quanto o sujeito sobre a bicicleta de circo para não se molhar. Na ausência do Estado, o exasperado pedala como pode.
A gente somos inútil. Ainda.
Não entrou em detalhe e nem me ilustrou a situação, mas fiquei imaginando a cena galhofa desse sujeito, um representante do inesgotável senso de ironia e humor que caracteriza o país até em situações limites. Não resisti rascunhar um pouco de pseudo-sociologia de escrivaninha sobre o ser brasileiro.
Temos uma vocação ilimitada - uma patologia congênita, quase - para ser indulgentes com os poderes. Poderes de todos os números, gêneros e graus. Protestamos e esperneamos publicamente contra o estado das coisas. Mas apenas na mesa de bar. A dialética do direito, dever e cidadania se inflama apenas naquele estreito espaço entre o balcão e a mesa de PVC. Um cantinho onde cada um defende teses salvacionistas - alguns buscam teorias nos gregos, outros até na vitória do Corinthians - por um país livre de corrupção, impunidade e políticos com cuecas e meias cheias de dinheiro.
Quando esvazia-se a garrafa e é hora de voltar para a casa, o entusiasmo por um país melhor retoma a apatia. A resignação só não cai por terra ao encontrar por acaso o Alvinho, primo de um assessor de um deputado, de cujo partido pouco se lembra, que lhe confidencia que "o homem vai chegar lá, e quando ocupar a poltrona, te dou um toque por aquela vaga".
O crime da elite política discutido minutos antes na mesa passa então a ter uma conotação mais branda. O dinheiro na meia passa a ser uma involuntária fraqueza humana e a visão da corrupção se converte em contravenção, um cartão-amarelo, já que promessas para escalar a pirâmide o torna cúmplice dos mesmos males.
A indulgência brasileira nasce nessa barganha. Há aqueles que, distante dos bares, acreditam fazer parte da outra margem do rio, os que direta ou indiretamente supõem ter afinidade com o poder. Se não é um cunhado assessor de um deputado que conta, há um primo que trabalha no Tribunal ou na Receita a dar aquele jeitinho, de colocá-los no contingente intermediário entre o cidadão comum e o poder estratosférico de Brasília.
O emaranhado de influências e cumplicidade nessa massa intermediária jamais poderia render protestos. É que espera-se sempre que os outros o façam. "Outros" é um cômodo eufemismo para tolos e honestos, já que o pobre nunca foi sinônimo ou prerrogativa de integridade. O pobre só é assim chamado - no sentido brasileiro da palavra - o sujeito que ainda não agarrou o primeiro gancho para uma boquinha e apenas porque deve escalar mais níveis "para chegar lá". Mas o fará, se houver oportunidades. A prova disso é que o cafezinho para o guarda de trânsito é garantido por toda a sociedade. Em maior ou menor escala, todos subvencionam a mutreta no país.
Nunca a metáfora do Brasil caiu tão bem quanto o sujeito sobre a bicicleta de circo para não se molhar. Na ausência do Estado, o exasperado pedala como pode.
A gente somos inútil. Ainda.
7 comentários:
Pior que nao eh metafora!
Mas eh.
Nei:
Tenho sempre aquela impressão de que o país saiu da fase colonial e passou diretamente à globalização, sem a fase intermediária da civilização e democracia. Achamos que coronéis de gravatas estão apenas nas grandes corporações e em Brasília, mas mesmo num âmbito menor - nos municípios, nos bairros e nas pequenas empresas locais - o coronelismo ainda reina. É um mau tão generalizado e institucionalizado que todos estão envolvidos. Diretor de uma filial de banco, fiscal da Receita, guarda de trânsito, funcionário de prefeituras, o empresário que compra vereadorzinhos e por aí vai.
oi Lu, boa tarde, pois é poisé né, fazer o que, importamos alguns Bin Laden, por que o negócio aqui ta difícil, estamos vivendo debaixo de esgôto para todos os lados,começa em Brasilia e passa pelo Iapóque e termina no Chuí bjs até que dias melhores virão se eu viver até lá.(diu)
Diu:
Faz pouco tempo que me atualizei com uma expressão que eu desconhecia, o "molhar a mão". Isso me foi 'sugerido' pelo próprio funcionário de prefeitura, qdo fui resolver uma questão legal.
Ja é uma coisa tao normal no Brasil(praticamente faz parte da natureza brasileira "molhar a mao" ou o "jeitinho brasileiro") que a ausencia dessa caracterista faz parte da exceçao (e rara diga-se de passagem)...
A gente vamos rebolando!
Bjs
Anna
Karine:
Qdo uma pilantra invadiu e tentou tomar posse de um imóvel de família, recusando-se a deixar o local (alegando pobreza), um funcionário da prefeitura me sugeriu 'molhar a mão' da assistente social para que ela providenciasse a expulsão, é mole?
Anna:
A gente somos impassível.
A gente somos condescendente, enquanto a gente pudermos sambar.
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