sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Compostura, sempre


Era um daqueles restaurantes em que você se curva ao maitre pelo delito de pretender uma mesa, mesmo uma extra, ao lado do banheiro. Teto de arcadas renascimentais, piso antigo de mármore e quadros impressionistas autênticos na parede. Daqueles em que um reles cliente, quanto mais um turista, pode ferir a sensibilidade do chef ou manchar as honras Michelin apenas porque não é um habitual entre os centenários. E ainda, carregar a culpa por sentir que a nossa presença rebaixou o nível daquele ambiente.

Eu apenas acompanhava um cliente japonês, entusiasta com a resenha que lera em uma revista internacional sobre o restaurante. Queria conhecê-lo a todo custo, antes de retornar a Tóquio. Do alto do seu olhar, o monossilábico maitre nos indicou a estrada. O restaurante parecia vazio e os garçons indiferentes, já que a conta de um único cliente já pagava o ostracismo de todos.

De frente à nossa mesa, se sentava um senhor, de ares nobres, com o seu cão labrador, preguiçosamente estendido aos pés da mesa comendo um prato exclusivo. Terá sido carne de primeira. Quem sabe, carne de chianina toscana, imaginei, já fazendo as contas de cabeça. Em torno ao prato do cão, se espalhavam restos de purê e molho rosa sobre o mármore de Carrara, quando o seu dono pegou o guardanapo de linho bordado de brasão do restaurante e inclinou-se para limpar a boca do seu amigo. Passou rapidamente sobre o pavimento e deixou o guardanapo ali mesmo, no chão. Austeros, nenhum garçon apressou a se mexer, como se tal gesto fosse uma ofensa à própria profissão. Se sabe, o servilismo não se inclui nas equações dos europeus, mesmo que a função os exija.

Eram tempos em que havia mesas para fumantes e o cliente não tardou a acender seu charuto cubano, inundando todo o ambiente de fumaça achocolatada, enquanto conversava ao celular sobre leilões de porcelanas chinesas com o seu suposto agente. Outros clientes pareciam inabaláveis, ou fingiam indiferença.

Não é raro observar que no centro da civilização ocidental, certos comportamentos não provoquem indignação ou desconforto. Não se sabe se se trata de um simples desprezo pelas regras sociais ou se essa desenvoltura pressuponha uma segurança inabalável de que nos países ricos e de grandes passados históricos qualquer atitude, mesmo arrogante, possa ser justificada por simples insubordinação do momento. Digamos, um estado de espírito. Transgredir è permitido, quando se tem o dinheiro e a história da civilização da sua parte. Desde que se mantenha a compostura.

A falta generalizada de respeito dos italianos pela fila, é um exemplo. Preferem furar ou formar a sétima ou a décima fila aglomerando-as, para afunilá-las ao guichê. E os fazem sem pestanejar. E sem dar ouvidos aos protestos de quem se põe civilizadamente atrás do outro. Uma passada rápida de apagador e as regras sociais morrem ali. Claro, desde que tal atitude não parta de indivíduos de países periféricos, porque aí é "coisa de terceiromundista" e merece apenas um meio-sorriso de desdém. Transgressão com compostura e elegância, tudo bem. A cultura eurocentrista tem sempre razão.

6 comentários:

Adrina disse...

Essa razão européia e egocentrista produziu Stálin, Mussolini, Hitler e Berlusconi, então não me admira que achem que as filas não foram feitas para eles. Viva o 3º Mundo.

KS Nei disse...

Quem mandou misturar Atenas e Jerusalem na psique?

Apesar de que Nepal e Beijing tambem nao valem a boca do labrador (no sentido etnocentrista da ideia).

Humanos sao humanos, sem fronteira ou passaporte.

Anônimo disse...

oiê LuMa, viva aAfrica,a America,e a Nova Zelandia,ainda bem que somos, excluidos rsrs Bjs. (diu)ha não podemos esquecer que alem de Stálin eo resto falta Salazar, e Franco.

Fabrício Andrade disse...

Maravilha, Luma. Mais uma constatação de que o velho continente não é essa impecável civilidade que se prega. A sensação de superioridade é que historicamente preocupa, como bem lembrado pela Adrina (fascismo, nazismo). Triste, triste. Queria, com todo respeito, dizer duas coisinhas sobre a língua portuguesa: as oxítonas terminadas em 'i' não são acentuadas (abacaxi, xixi, ali, aqui - tudo cem acento); e o verbo haver no sentido de existir é sempre invariável e impessoal (havia mil pessoas lá no evento - nunca 'haviam') Um beijão.

LuMa disse...

Fabrício:
Vc tem razão, obrigada pela correção. Me corrija sempre, sem embaraço. Não uso o corretor, e tantos, mas tantos erros acabam passando batidos,rs. Tenho que relê-los mais vezes, antes de publicar os textos :)

Anna Karine disse...

Sobre o senhor citado no seu post: é um baita de um cafona! Nao tem um pingo de educaçao e nem respeito pelos outros. Porem tem dinheiro e pode comprar a tolerancia dos outros, fazer o que,ne? Vivemos num mundo de "prostitutos moralistas".
Em relaçao as filas na italia... Eu tenho trauma! Eles nao fazem fila indiana. Eles inventaram uma pessoal, que consiste em olhar quantas pessoas estao no recinto, calcular quanto tempo levara para chegar a sua vez, ir tomar um caffè no bar mais proximo e chegar prepotentemente querendo seus lugar de volta... UM HORROR! Sem falar que anciao e mulher gravida tem que esperar na fila igual aos outros...Em pè mesmo pois ninguem levanta e oferece a cadeira...