quarta-feira, 13 de janeiro de 2010
Aparências
Eu estava no trem a caminho de Florença por razões de trabalho, quando à minha frente se sentou um jovem de seus 30 e poucos anos, impecavelmente vestido e estudada indiferença com o ambiente ao redor. A vaidade parecia gritar ao mundo quanto o seu perfil urbano de profissional em ascensão já havia lhe garantido um invejável sucesso entre os desprezíveis passageiros ao redor.
Mal sentou-se, cruzou espaçosamente as pernas esbarrando as minhas, sem me dirigir uma palavra de desculpas. E enquanto falava ao celular entre o ombro, abriu o laptop ocupando tudo para si a mesinha que nos dividia, como se milhões de euros dependessem de cada segundo de seus atos. E num intercalar de volume, vociferava agressivamente com "non hai capito?!" e sonoros "cazzo!", para abaixá-lo quase sussurando o conteúdo que não lhe era conveniente. Talvez quisesse reafirmar seu suposto comando na pirâmide social perante os confidentes involuntários do vagão.
Durante todo o trajeto, sua mão não pousou o celular. Quando não o chamava, era ele quem ligava a todos, repetidamente, como fosse assolado por um distúrbio nervoso.
Eu ainda não havia compreendido por completo o contexto da sua profissão. Supunha, pela desenvoltura e ostentação com que falava aos interlocutores, que fosse no mínimo um ceo de uma importante multinacional. E, certamente, outros dois passageiros que dividiam o sufocante espaço sonoro fingindo ler seus jornais também estavam tão curiosos como eu até onde o jovem prosseguiria com seus maneirismos e superlativos.
Como um refrão de anos atrás, repetido num comercial de refrigerante daqui, a imagem é tudo para alguns. Na falta de um interlocutor direto com quem simular a própria imagem num lugar público, é através do celular que se ostenta aos quatro ventos o que pretende demonstrar de si. O celular não apenas apressou nossas vidas, mas tornou-se também num cúmplice ambulante de todos os vícios humanos. Nos tornamos dependentes dele; logo, temos que ser indulgentes com o vício alheio.
Num ambiente impróprio, a humanidade se divide em dois grupos. Os que não escondem o embaraço e os que sentem os egos alimentados de vaidade ou soberba, ancorando-se naquela premissa do "sou requisitado; logo, sou indispensável". O trinado se tornou um divisor de água dos caráteres humanos.
Certamente o jovem pertencia ao segundo grupo. Foi quase no final da minha viagem que desvendei seus segredos em conversas sussurradas. Se desculpava com o chefe da imobiliária na qual trabalhava como corretor, de que havia dois meses que não conseguia sequer vender uma casa.
Fingi continuar a leitura monótona do meu livro, já que àquela altura, sua vida privada havia invadido a minha. E foi no décimo telefonema de sua mamma, que o sujeito se revelou involuntariamente. Suplicava-lhe que não contasse ao papá de que havia três meses que não pagava o aluguel do seu loft e que estava para ser despejado pelo proprietário irredutível. "A propósito, você pode me emprestar 300 euros?" Foi a última frase que ouvi, antes de descer em Florença.
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11 comentários:
Hilário, eu jamais poderia viver ai, pois sou do tipo que tira a roupa do varal e visto (RSRSRSR)e odeio celular, estava eu fazendo uma ficha ela perguntou ?,prontamente não tenho, ela me olhou como se eu fosse de outro mundo,fora as baianas que não sai do meu pé para nada (rsrsrsrsr)Lu vc já pensou em um livro seria ótimo não bjs.(diu)
Diu:
Pessoas escamoteadas em falsa imagem estão em todos os ambientes e em todas as partes do mundo,rs. Acho que essa competência seja um subproduto da TV :)
Lu, desculpe não ter completado a frase, vc já pensou em um livro poderia escrever seria muito interessante; pense no assunto.bjsDiu)(outra coisa que é pura ignorância alfabética minha as acentuaçòes ainda mais que meu teclado não é daquipor tanto me perdoe os erros).(diu)
ma que beleza de crônica, dona luma! aplaudo de pé!
Lindo! Eu não sou muito fã de telefone celular, não. Só fico com ele a postos em horário de trabalho; ao chegar em casa, ele é devidamente abandonado com a bolsa em algum canto da casa. Quanto à arrogância do seu vizinho de poltrona, só me resta lamentar. Às vezes, penso que essa empáfia que algumas pessoas tem na verdade é um escudo, uma máscara, para esconder das outras pessoas o quanto elas são "comuns" ou "normais", e que não são a última coca-cola do deserto.
LuMa,
Ufa!Pensei que fosse só por aqui que existissem esses tipos, é nada, esse tipo de comportamento, poderia ser classificado como "epidemia social". as pessoas estão completamente afogadas numa fantasia de opulência que não se permitem dar os passos conforme suas pernas, me parece que logo haverá um colapso e todos voltarão aos seus lugares de origem, quem sabe?
Adorei a imagem das desculpas para o chefe e o pedido de socorro para a Mama!
Bjs
PAola
Diu:
Livro? Seria muita presunção minha,rs. Diu, fofa, não ligue para acentos ou erros de digitação, pois eu tbém descubro uma montanha deles ao reler meus textos :)
Ah, Firenze!
Desci a Ponte Vecchia e sentei na margem do lado "Nao-Davi" da cidade e fiquei olhando o arco da ponte, as historias que ela carregava.
Nao consegui tirar da cabeca o pe do Godzilla dando um adeus aos meus devaneios.
La Donna del Mobile?
Atenda o seu e diga, aos berros: 10 milhoes? Claro! Me liga as 3!
Nunca fiz isso, mas sempre ha um impulso Godzilla.
Besos!
olá , entraram 3 novas poesias, não posso fazer de conta que nada aconteceu, tive um desentendimento com uma pessoa do site, o que me deixa muito triste, não sei o que vai acontecer, mas eu gosto de escrever, e gostaria de continuar postando meus textos, espero que isso não te afaste do site, ele continua sendo maravilhoso. Se puder, se me permitir pedir que publique seu texto "Aparências" no autores, é um termometro, receberá criticas ou elogios, conforme a qualidade do texto, do jeito que escreve será com certeza bem lida. Bjk, um grande abraço
Maker:
Olá, obrigada pelo convite para participar do site, fico muito grata. Mas creio que este cantinho pessoal me seja suficiente - de bom tamanho para a extensão dos meus rabiscos. Confesso que não aspiro mais que isso :)
Entrarei sempre no site como leitora, sim, e com prazer.
Abraços!
nossa, essa história me traz à memória o filme "O Primeiro Ano do Resto de Nossas Vidas" ou St.Elmo's Fire, com Demi Moore - em início de carreira qdo todos especulavam se ela era sobrinha de Roger Moore - que faz o papel de uma corretora de valores que estoura todos os cartões de crédito e está para ser despejada... tudo pelas aparências!!!
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