quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Boas Festas!



A todos aqueles que eventualmente passar por aqui, um bom Natal e um ano novo melhor que este que termina.

Boas festas a todos!

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Espertos e expertos de vinho


Gosto de queijos. Gosto muitíssimo de queijos. Mas gosto deles apenas porque gosto de comê-los. E não para entediar os amigos com conversas sobre vida, morte e milagre de fungos que não passam de leite apodrecido. Tudo bem, há podres e podres no critério pessoal deste prazer. Mas após degustados, o prazer morre comigo, e por alguma falha no hipocampo da memória, seus nomes complicados em francês também.

Conversando certa vez com um velho comerciante de queijos - naturalmente um grande experto no assunto - , perguntei-lhe qual dos tipos previamente escolhidos por mim fosse o melhor. "O melhor é aquele que mais agrada ao seu paladar, não importa se popular ou raro", respondeu, com sorriso. Justo. Cada juízo é sempre subjetivo, condicionado pela combinação entre os sentidos e o cérebro, o órgão que realmente vê, prova, cheira e toca para formar o juízo pessoal.

Lí tempos atrás em algum lugar que Robert Parker, aquele implacável crítico norte-americano de vinhos mais influente do mundo - o carrasco que estabelece a vida ou a morte das vinícolas internacionais - tivera os olhos vendados por um desafio. O de provar e avaliar no escuro diversas garrafas e safras. O resultado foi penoso. Avaliou como 'melhor' o mesmo vinho que antes, de olhos abertos, classificara como 'pior'. E confundiu ainda um Bordeaux de um vinho ordinário, entre outras gafes.

Isso vale uma desforra para os comuns mortais. Com todo respeito aos sommeliers e degustadores de vinho, faço parte daquela leva de consumidores que nunca alcançou percepções elevadas e tão precisas - mesmo num vinho mais celebrado e celebrizado - naquele suposto retrogosto de nozes, amoras, flores ou madeira, que só as autoridades enológicas dizem ter alcançado. Percepção é tão mutável quanto o humor e o tempo. Ou não?

E há vaidades que vão além. Nos olham com um certo desdém e um brilho quase divertido de pena e humilhação apenas porque a nossa reles sensibilidade gustativa, onde já se viu, não identificou a "sinfonia dos ventos que descem as montanhas de Vosges e lambem as águas do Reno no retrogosto de amoras desse Pinot Noir". Nas resenhas enológicas que circulam por aí não faltam literaturas deste gênero.

Bem mais enfadonho é aquele que numa roda quer desfiar prova de sofisticação disparando jargões enquanto inicia uma lenta e presunçosa ritualização para a simples abertura da garrafa. Cheira a rolha, enrosca a taça entre os dedos e a faz girar fixando o olhar no infinito, como se a nossa presença importunasse seus egos por estar no mesmo ambiente. Naquele momento, é certo que a falsa autoridade nos abandona por outra dimensão. Quem sabe, numa Val de Loire celestial cercado apenas por membros seletos de sua confraria, esquecendo-se que amanhã é segunda-feira e tem um cheque alto que vai cair, enquanto a esposa grita lá da cozinha para que ele desça logo com o saco de lixo.

Respeito os verdadeiros conhecedores de vinho, os que sabem distinguir a exposição das vinhas, do seu sabor e dos frutos. Um técnico, sem a pretensão de um literato. E quanto mais o pseudo-experto se perde em literatura enológico-filosófica, mais me convenço de que o comerciante de queijos tenha razão. O que eu quero é apenas o meu copo cheio do que me agrada, e me basta assim.

Nestas festas, haverá quem abra uma Sidra Cereser e outros poucos, um Perrier-Jouet. Os sabores são fugazes e seus preços são meros condicionamentos de mercado. Festa boa é aquela que nos faz feliz. Até mesmo com uma tubaína.


quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Velhinhas 'camisas negras'


Há pouco mais de um ano um casal de romenos veio morar logo abaixo do meu apartamento, no andar térreo. Pela sua discrição e silêncio, fiquei por uns três meses sem sabê-lo da existência destes novos moradores. Para conter as despesas condominiais, a administração do prédio decidira alugar para o casal o imóvel destinado para a habitação do porteiro, do qual este havia renunciado.

O fato havia suscitado curiosidade em mim. Ainda que a grande maioria da sociedade italiana não sucumba ao bombardamento diário de propaganda e incitação a delatar suspeita de clandestinos ao seu redor, é inegável que a desconfiança com o desconhecido se respire no ar. Sobretudo quando este decide morar ao lado.

No meu próprio prédio já ocorreu fatos de denúncias contra o 'suspeito'. A polêmica lei que multa e instiga a delação contra proprietários que alugam seus imóveis a clandestinos ou a estrangeiros suspeitos, havia acabado de entrar em vigor naqueles dias.

Entusiasmada com a nova ordem do governo, uma senhora idosa, declaradamente eleitora da liga Nord e autoproclamada 'guardiã' do nosso prédio, entrou prontamente em ação. Certa de que um chinês fosse absolutamente sinônimo de clandestino, convenceu a polícia a efetuar uma 'batida' - sabe-se lá com que persuasão, já que a Polícia não se desloca tão facilmente - no apartamento recém-alugado por duas jovens chinesas, na outra ala do prédio. Para a sua surpresa, deu-se com um furo na água. Tratava-se de duas universitárias com vistos regulares de estudantes, frequentadoras de uma universidade local.

Após a nova ordem emitida pelo governo Berlusconi - sempre através da Liga Nord, o seu braço direito - um outro fato envolveu um distinto e discreto profissional de meia idade e cidadão italiano, antigo morador do prédio. A denúncia partiu de uma 'premissa' formulada por outra moradora aposentada. A suposta namorada deste cidadão era uma travestí brasileira; logo, ele só poderia ser seu protetor.

Desconheço a consequência que isso tenha gerado entre os envolvidos, mas certamente a idade das delatoras as poupou de uma possível causa terminada em tribunal. O resto dos habitantes apenas sorrí, com um misto de desdém e condescendência pelas suas idades, ainda que reconheçam os danos que elas já provocaram a inocentes.

Nos meses sucessivos aos falsos 'alarmes', não ví mais a brasileira em companhia do namorado italiano. Talvez gerado pelo mal-estar, outras duas universitárias chinesas também deixaram o imóvel logo em seguida, pois nunca mais as ví.

Surpresa com a tolerância das delatoras com o casal de romenos - um dos mais visados na caça às bruxas junto aos albaneses, por responder por maior número de criminalidade no país - , só descobrí a razão quando troquei algumas palavras com a esposa do casal. Seu marido trabalha na pequena empresa de construção e manutenção que presta serviços ao nosso prédio. A locação do imóvel só foi possível porque o seu patrão assinou vários documentos de garantia pelo romeno, de cuja mão de obra lhe é indispensável na empresa.

A cada novo caso de crimes envolvendo um romeno nas páginas de jornais noto maior discrição do casal abaixo do meu apartamento. Vive como fantasma num silêncio absoluto, como se temesse os vivos. Os vivos de camisas negras.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Caquis de Natal


Faz frio nestas manhãs em que tenho saído muito cedo de casa. Algo em torno de 2 a 3 graus, sob um vento gélido dos Alpes que penetram até os ossos.

Caminhando pelas ruas rumo ao compromisso de trabalho, desejo apenas chegar o mais rápido ao conforto do calor de ambientes fechados. Mas como não perder dois minutos diante de uma beleza como esta, perdida na pressa urbana?

Os caquis, quem diria, no jardim de um edifício na região central da cidade. Não havia sequer uma folha que resistisse no alto, senão esses frutos mostrando a cor no seu máximo esplendor. Roubar um deles, apenas um direto da árvore já teria me bastado para ter o dia um pouco mais feliz.

Está eleita a mais bela árvore de Natal da cidade nestes tempos tão cinzentos de humor.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Ao Papai Noel Silvio




Querido Papi Noel Berlusconi,

Sabe, já faz um bocadinho de tempo que não sou mais tão lolita criança para participar de suas festinhas privadas, se bem que eu queria um colarzinho de diamantes brinquedo no Natal também. Sabe, como aquele que o senhor deu escondido àquela criança mocinha, a Noemi? Mesmo assim, eu lhe peço encarecidamente que leia esta cartinha e me reserve um minutinho de atenção.

O Natal está às portas. Se me consente, prefiro lhe chamar de Papi Noel, por tanta benevolência com meus amiguinhos italianos nos últimos anos e, mais ainda, com os esfomeados imigrantes que vivem no seu país. Seu altruísmo com os oprimidos não há limite, e o senhor mesmo repete a propaganda isso na tevê, todos os dias.


Mais generoso ainda é com a minoria mafiosa invisível, os empresários sem-tetos, os parentes banqueiros necessitados e com o próprio patrimônio empresarial do povo. São tempos duros para eles, eu sei... Por isso é que o senhor vai priorizar esses meninos com bons presentes, e se sobrar um tempinho, vai dar um alô ao resto da criançada desempregada em rede nacional mesmo. Qual criança não fica feliz apenas com um sorriso como seu na TV?


Mas...sabe aquele seu ajudante que se senta à direita no Parlamento aí na fábrica de brinquedos, o neofascista o Seu Bossi? Ele estranha um tiquinho com crianças que não sabem rezar o Pai Nosso, não é mesmo? Sabe, aqueles barbudinhos que usam turbantes ou caftans e só comem kebabs? Parece que neste Natal, ele quer ser bem generoso e presentear os meninos com uma alegre excursão à Meca, sem retorno. Disse que vai fazer o mesmo com os meninos tropicais que se vestem de meninas e só brincam à noite; mas também com os traquinas que vendem bolsas Shanel nas ruas. Seu Bossi diz que o Natal tem que ser "White Christmas", e não "Black Christmas" ou "Brown Christmas". Não entendí direito...

Pois então, neste Natal, eu lhe peço um presentinho a todos os desamparados da minha escolinha. Em especial, aos meus amiguinhos italianos, digamos, para os 49% da escola. Tá certo, eles são um pouco rebeldes sem causa e não votaram no senhor, mas eles são bem mais estudiosos e não ficam colados na sua tevê como o resto da turma, eu lhe garanto.

Peço também uma lembrancinha aos meninos da Magistratura, que fazem a lição de casa direitinho, mas vivem apanhando da diretoria e acusados de mentirosos. Lembre-se Papi, que alguns destes meninos de beca já morreram debaixo de bombas brincadeiras armadas por seus afilhados moleques de rua lá do sul.

O presente? Nada de caro, bem baratinho mesmo, porque sei que o seu orçamento é bem apertado com essa crise toda. O senhor é que fez bem, em ter estocado um monte de brinquedos para sempre, lá nas suas fábricas Finivest e Mediaset, e até nas filiais de algumas ilhas partes do mundo. Os meninos aqui carecem apenas de algumas coisinhas simples, tipo leis. Leizinhas contra a corrupção da diretoria da escola, contra a imunidade dos protegidos do professor e contra alguns trombadinhas de rua que vivem ameaçando os meninos de beca durante as aulas de pesquisa.

Tá vendo que não vai gastar muito? Olha, um último pedido. Não deixe aqueles meninos "pianistas" da sua fábrica votarem o contrário, hein?

Beijos, Papi Noel, vou esperar sentada ansiosamente pela sua promessa.



Muito obrigada.


terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Tempos que correm


Mesmo sob um insistente chuvisco, fui ontem esticar as pernas atrás de uma livraria do centro, localizada nesta rua, da foto acima.

Estamos em plena ponte de feriados. Hoje, terça-feira, festeja-se a Imaculada Conceição. Ontem, foi a vez apenas de Milão, feriado de padroeiro da cidade, Santo Ambrósio. Admirado por milaneses religiosos e laicos pela sua erudição, Aurelio Ambrogio viveu os anos entre 340 a 390, sob o último imperador romano Teodósio. Foi escritor, advogado, estudioso da Igreja - a quem Santo Agostinho deve a sua conversão - e bispo de Milão.

Aspecto religioso à parte, a data de Santo Ambrósio é estratégica para os comerciantes e artesãos, às vésperas de Natal. Uma das ruas centrais é tomada por bancas de comidas, artesanatos e artigos para presentes, numa ebulição quase claustrofóbica. Já a noite, é reservada para personalidades, intelectuais e Vips, que se aglomeram para a abertura de temporada de concertos e óperas do Teatro Scala.

Para acabar com a alegria do feriado, me deparei com um quiosque montado pela Liga Nord, o partido de extrema-direita do polêmico líder Umberto Bossi, um dos braços fortes do atual governo Berlusconi. Os partidários do neofascismo anti-imigração - os mesmos que dias atrás propuseram a inserção do símbolo de cruz na bandeira italiana, numa nova Cruzada contra os muçulmanos - distribuíam panetone e espumante para os passantes que assinassem um documento contra novas aberturas de sedes para o culto muçulmano. Passei direto pelo quiosque, com a sensação de ter, por algum instante, retornado ao período medieval.

Esta manhã, leio na rede que a Liga Nord, através do seu jornal de partido, continua a atacar o cardeal Tettamanzi, da diocese milanesa, conhecido pela pregação à tolerância religiosa e respeito aos imigrantes e à minoria. Os partidários xenófobos o acusam publicamente: "Tettamanzi é imã de Milão".

Não bastasse, leio também que 'la prima' do teatro Scala, com Carmen de Bizet, foi tumultuada com lances de ovos contra Vips e personalidades políticas por parte de manifestantes e operários desempregados, postados estrategicamente na entrada.

São os tempos que correm. Prefiro a revolução a evolução, destes tempos amargos.


sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Quintal


Estranhamente, não há uma precisa tradução em italiano para a palavra 'quintal'. Não se trata de nenhuma deficiência do léxico italiano. Como em todas as línguas, é apenas diferença de nuança, que só a própria realidade é capaz de sugerir a certas palavras. Talvez por isso, nunca me sinto completamente traduzida quando me refiro à palavra, com os amigos daqui.

Tal qual a nossa, na morfologia de construção da casa italiana inclui naturalmente um quintal - ora chamado de cortiletto di fondo , outra de giardinetto - , mas seu uso se limita apenas ao significado físico-espacial. Já para um brasileiro, o quintal não é apenas o fundo de casa; ele transcende a semântica. Foge ao controle e torna-se um conceito, quase sempre associado ao conforto familiar e doméstico. Torna-se privacidade, abundância, socialização e um universo de outras sugestivas sensações.

Minha avó possuía um pedacinho deste universo abstrato. Era o seu espaço de contemplação. Do seu quintal podia avistar o contorno azulado da majestosa serra da Mantiqueira ao fundo. Em tempos de florada, os distantes ipês tingiam aquí e alí de manchas amarelas os pastos vizinhos.

Passar as férias na minha avó exigia paciente espera por todo o ano escolar. Naquela idade, a distância até a cidade situada no Vale do Paraíba parecia uma viagem infinita quanto seria a Austrália, em tempos de hoje. Meu pai me puxava pelas mãos, de trem, através daquela sonolenta ferrovia São Paulo-Rio, sem nenhum horário preciso. Depois, pegávamos ainda o ônibus da Pássaro Marron, quando ainda mantinha a sua cor original, para descer naquele ponto onde frondosos e perfumados eucaliptos abriam caminho até a sua casa.

No seu quintal, o tempo passava lentamente. Um gigantesco abacateiro alimentava os porcos do curral, enquanto as goiabeiras ao lado não maturavam seus frutos. E de frente à sua cozinha, dois mamoeiros exibiam o ano todo os frutos daquele casamento. Meu tio dizia que o mamoeiro macho se sentia só, sem uma companheira ao lado. Só juntos é que podiam dar frutos doces, para a alegria das galinhas que ciscavam sob seus pés. Ainda hoje, quando vejo um mamoeiro no quintal alheio me pergunto se o dono se preocupou em encontrar uma noiva para ele.

Comprei estes dois mamões papaya esta manhã, já que reservo os finais de semana para colocar algo em boca que me conforte a nostalgia do sabor brasileiro. Quando me encontro na casa da minha mãe, faço questão de saboreá-los sentada no seu quintal. Um espaço confortante, ainda que seja todo cimentado. Enquanto sonho nesta parte do hemisfério, com uma casa em algum paraíso bucólico onde contemplar melhor a vida, me contento saboreando estas papayas vindas de longe.


terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Turistas sexuais no Brasil



Por hábito, peço sempre a última poltrona do avião quando a viagem é longa, na esperança de que eu possa dormir dignamente deitada, quando o voo não está lotado. A escolha do fundo é sempre uma loteria, pois nos reserva também surpresas desagradáveis. Se não é a incessante descarga no banheiro, são as pontuais conversas e gargalhadas incivis de passageiros entediados. Com a desculpa de esticar as pernas, se aglomeram lá no fundo em animados bate-papos. Sem o menor respeito aos que dormem em torno.

Mas foi naquele estreito 'ágora aéreo', que me ví inúmeras vezes transformada - ainda que eu fingisse profundo sono - em confidente involuntária de conversas de turistas estrangeiros, com aberrantes lugares-comuns acerca do país de destino. E não há desconforto ou frustração maior que ouvir suas piadas e não poder replicá-los, quando o tal destino é o próprio país de origem.

Na triste estatística pessoal, sete em dez viagens ao Brasil, ouví excitadas conversas de expectativas pelo paraíso brasileiro de "mulheres fáceis", por grupos despudoradamente constituídos apenas de homens, solteiros ou aposentados. Alemães, suíços, italianos ou holandeses, não importa; quase sempre com o destino final em alguma cidade da costa brasileira.

Nem é necessário compreender suas línguas para intuir o contexto, pois bastam alguns substantivos em português saltarem cá e lá nas suas conversas, intercaladas de grandes gargalhadas, como se ao redor não houvesse presença de brasileiros. Palavras-chaves como "mulata", "favela", "veado', "bunda" e outras coisas inomináveis, supostamente pescadas na internet ou nos guias turísticos promovidos no exterior pela própria Embratur. Ou até mesmo sugeridas por brasileiros que vivem nos seus países. E afinal, o que dizer se agências do próprio governo brasileiro instrumentalizam a expectativa, com fotos de mulheres seminuas, com o Corcovado ao fundo, para vender o próprio turismo fora do país?

Num dos tantos sonos roubados a caminho do Brasil, me chamou atenção uma conversa sussurrada entre três italianos, de me fazer estremecer, logo ao lado da minha poltrona. Supunham, talvez pelos meus traços orientais, a ignorância da língua. Valiam-se de expressões 'codificadas', mas bem compreendidas por mim. Discorriam sobre um brasileiro que os aguardava no aeroporto, com roteiro 'turístico-sexual' supostamente personalizado, incluindo aí a garantia de pousadas em companhia de 'ragazzini' e 'ragazzine', meninos e meninas, durante a permanência numa cidade nordestina. E sem nenhum pudor, e com uma calculadora nas mãos, se puseram a contabilizar a 'tarifa' delle ragazzine - como fosse aquisição de mercadoria qualquer - e outras vantagens oferecidas pelo câmbio de moedas.

Hoje de manhã, ao ler este artigo na Folha, meus dedos dispararam sobre os teclados para escrever este texto. Um impulso talvez para contrapor o senso de impotência perante conversas como aquelas, ouvidas durante os voos, e pela ausência de um cerco mais severo contra o turismo sexual no Brasil. E quanto ao artigo, Robin Williams apenas confirma o que se espera do nosso país. A começar pelo que a própria Embratur vende aos estrangeiros.

Segundo os dados de 2008 da Unicef, 80 mil italianos se lançam anualmente ao turismo sexual.
Quantos serão os americanos, japoneses, alemães e outros tantos estrangeiros prontos para o embarque hoje?

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

O português do armazém


Seu Pedro, o português do armazém, a duas casas depois da minha, era conhecido naqueles quarteirões por "Pedroca, o mão-de-vaca". O apelido não parecia ofendê-lo. Afinal, quem o chamava assim eram apenas os inadimplentes, aqueles que compravam na caderneta e continuavam a não liquidar suas contas depois do dia 10 do mês.

Naquele início dos anos 70, a vida no meu bairro carregava ainda aquela aura familiar e vigilante, onde todos conheciam quem era quem entre os habitantes. Qualquer novo forasteiro que chegasse com o caminhão de mudança já se tornava o argumento da semana. O açougueiro, o padeiro e as janeleiras-sentinelas se proclamavam porta-vozes da ficha completa do novo morador.
Seu Pedro, desconfiado e cauto como era, obtinha logo o currículo do chefe de família recém-chegado para decidir o crédito na caderneta de compras do seu armazém. "Ora, pois, pois, só vendo fiado se estiver empregado na carteira", era o seu mote, enquanto alisava o espesso bigode escuro. Sim, ele reconfirmava o estereótipo do português bigodudo sem nenhum embaraço.

Minhas amiguinhas e eu éramos freguesas pontuais do seu Pedro, ainda que o nosso consumo não alterasse em nada na sua liquidez. Talvez por nossas míseras aquisições, nunca nos concedeu um sorriso - mesmo que esvaziássemos todas as moedas dos nossos cofrinhos - , mas conhecia por bem a honestidade e pontualidade no pagamento de nossas famílias.

Era ele quem cedia na caderneta as varetas e o papel celofane para as nossas pipas. A Jorginho, o melhor dos seus pequenos fregueses, vendia a farinha. Quilos dela para a cola. Afinal, Jorginho detinha o monopólio com a venda do seu infalível cerol e turbinadas pipas naquele bairro. Por tabela, o tino comercial de Jorginho lhe incrementava a venda de varetas (e o troco de balas). Furtivamente, o terá eleito como melhor garoto-propaganda do seu velho armazém. Mas o que lhe importava é que nossas famílias saldassem pontualmente as compras no dia 11 do mês. Incluindo aí nossas jujubas, dadinhos Pingos de Leite e doces de abóbora em forma de coração.

E era naquele armazém - um microcosmo dos carrefours de hoje - abarrotado de panelas, cereais, fumos de corda e doces de validade duvidosa que nós - mesmo sob o olhar inquisidor - , nos entregávamos ao indescritível prazer de afundar as mãos nos cereais contidos em diversas caixas divisórias, das quais pesava e vendia por quilo. A mesma satisfação de Amelie Poulain, na cena em que ela repete o gesto no balcão do quitandeiro-resmungão. A censura de seu Pedro com as nossas brincadeiras nada tinha com a higiene e respeito a outros clientes. Simplesmente não queria que puséssemos as mãos nas suas mercadorias. Justíssimo.

Anos mais tarde, me mudei para o centro da cidade, onde não havia mais nenhum quitandeiro ou armazém na mesma calçada. Apenas escritórios e construções para a verticalização da cidade. O período coincidia com a chegada de grandes redes de supermercados no país, e posteriormente, quando me ví adulta, todos os produtos de consumo já estavam a caminho da digitalização, resumidos em códigos de barra. Terminava alí a lembrança da relação tête-à-tête entre o comerciante e o pequeno consumidor.

Me lembrei ontem do "Pedroca, o mão-de-vaca", ao pagar uma compra num supermercado de rede francesa instalada neste bairro milanês, onde vivo. Semanalmente me deparo com um novo caixa, e ontem, não foi diferente. Ao ser advertido que eu recebera o troco errado, o anônimo caixa me fulminou com olhar desconfiado. Ao perceber o próprio erro, apenas franziu a testa resmungando algo em dialeto sulista, aborrecido com a perda de seu precioso tempo. Mudo, me devolveu com gestos bruscos o valor restante, sem me dirigir os olhos ou uma palavra de desculpa.

A memória do seu Pedro me fez sorrir, ao lembrar que no fundo, a sua honestidade e integridade suplantavam largamente a reputação de rabugice e avareza. Ao menos nos dirigia pelo nome e nos tratava com cortesia. Ainda que nos oferecesse sempre balas como troco.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Saving private Berlusconi


Começa hoje no Senado o debate sobre a lei Alfano. O exército do governo italiano já está munido de todo arsenal bélico e dialético para o resgate do soldado Berlusconi. O Senado cederá, certamente, ao 18° salvo-conduto dos últimos 15 anos, libertando-o de acusas por corrupção, fraude tributária, conflitos de interesse, envolvimento com as máfias, e outras mutretas.

Se aprovada mais essa lei ad personam, que encurta os processos penais, Berlusconi poderá se safar mais uma vez com a prescrição. E junto, todos os processos de corrupção que envolvem outras grandes empresas nacionais e internacionais no território italiano.

A lei é milimetricamente sob medida, - para ele e o seu conglomerado - com a precisão da tradicional alfaiataria italiana. Na cadeia restarão apenas ladrões de galinha.

Parece que já ví esse filme no outro lado do Atlântico.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Evocação do presente


Ao bisbilhotar a sacola de compras que meu marido trouxera ontem do supermercado, encontrei entre suas provisões semanais de produtos dietéticos uma agradável surpresa, à qual ele pretende aderir regularmente: uma confecção inteira de Yakult, tal qual tomei até a minha adolescência. A mesma familiaridade na embalagem, cor e logotipo, não fosse a distinção que tudo está em italiano, com o slogan "Buongiorno salute". Ao abri-lo, sentí seu sugestivo odor acre acionar o rewind da minha memória, rebobinando a minha existência até os anos 70.

Para um brasileiro, a minha nostalgia pode soar estranho, mas o fato é que a presença deste pequeno frasco de lactobacilos no mercado italiano é mais que recente. Lançou-se aquí há apenas dois anos, no início de 2007, sob a licença da matriz japonesa e da Yakult Europe. Segundo a embalagem, a produção européia é inteiramente centralizada na Holanda. Seria antagônico, portanto, se eu não estivesse há 20 anos sem consumí-lo, senão nas poucas vezes em que eu o levei à boca durante as viagens ao Brasil.

Com os tempos que correm, era natural que a filial italiana limitasse sua distribuição apenas às grandes redes de supermercados. Não conhecerão, portanto, a aura romântica que nós brasileiros atribuimos à infância, dos tempos em que senhoras e donas-de-casas batiam nossas portas com seus carrinhos refrigerados cheios de frascos. Para nós, o produto é um contemporâneo de tantos pais e mães de famílias (ou até avôs), pois segundo o próprio site, a filial brasileira instalou-se no país há 41 anos, em 1968. Aquela mesma fábrica de São Bernardo do Campo, em São Paulo, de cuja rodovia que a atravessa, se vê (ou não mais?) instalações de vaquinhas em tamanho natural, distribuídas pelo gramado.


Ontem, enquanto eu sentia seu sabor tão íntimo e familiar expandir-se por todo o céu da boca, fui tomada por uma irreprimível curiosidade. Se haverá ainda no Brasil a distribuição porta a porta, por aquelas senhoras de carrinho. Como afago à nostalgia, prefiro pensar que elas ainda resistem. A desolação combinaria apenas com esta versão italiana, tão semelhante à brasileira quanto impessoal e anônima para o meu íntimo. Falta-lhe memória ainda.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Ponto G superior


Confesso que nunca entendí bem o que é 'ponto G'. Tenho certeza apenas de uma coisa. Depois de uma certa idade, as delícias orgásticas localizam a fraqueza humana bem lá pra cima do corpo: o paladar.

Eu identifico na porchetta, um prato italiano cuja paternidade é polêmica - entre a região de Lazio e Sardenha - , o meu ponto G incondicional. Trata-se de porco desossado, marinado com mil temperos e assado por longas horas no carvão, cuja origem é bem remota. Diz-se que os etruscos, bem antes dos romanos, é que descobriram o tal orgasmo. Logo, os etruscos antecederam a farmacêutica Pfizer de ao menos 2.500 anos.

Os preliminares não são lá muito diferentes do outro. Com a internet, o cortejo pode iniciar com um 'enter' de dentro de casa, mas habitualmente começa na rua, ao identificar a 'presa' numa vitrine de frios de um supermercado ou de um açougue. Dalí, a tentativa de consumar o ato se torna incontrolável. Quando encontramos o 'alvo' num jantar de amigos, tudo bem, a excitação é grátis e nem precisamos lavar os pratos. Mas quando temos que pagá-lo, o preço pode ser um pouco salgado, mas vale recorrer à prostituição. Custa em média 25 euros o quilo. Na dúvida, basta pedir uma amostra de acordo com a carteira - coisa de 200 a 300 gramas de porchetta - e já teremos uma meia-satisfação.


Após o clímax, acende-se aquele mítico cigarro a la Marlene Dietrich - apenas entre fumantes, para ser politicamente correta - enquanto a comida se assenta silenciosamente no estômago. E dependendo do grau de satisfação, pode-se permitir ao desleixo de tirar uma sonequinha em seguida. A tristeza e o sono após a comilança é um ritual que aos homens são permitidos, mas não perdoados pelas mulheres. Elas gostam de afagos, mesmo depois de satisfeitas. E lembrem-se. É quase sempre ela a ter que lavar os pratos, terminado o prazer.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

O sobretudo chinês


Me lembro, como fosse ontem, tudo o que compunha a casa de um velho chinês, a quem meu pai fazia frequentes visitas me puxando pelas mãos. Ainda que a língua portuguesa os acomunasse com dificuldade, ambos recorriam à comunicação mais prática, a escrita, através de ideogramas rascunhados num papel ou desenhados com um graveto no seu jardim.

Como se sabe, a fonética entre o chinês e o japonês é tão semelhante quanto o é entre o português e o tcheco. Se estes possuem o alfabeto em comum, os primeiros têm os ideogramas. A amizade entre ambos prevaleceu entre os meus 7 a 10 anos de idade, na segunda metade dos anos 60.


O velho chinês fora um combativo militante na Manchúria contra o imperialismo japonês. Posteriormente, fora um coronel de Kuomintang, o partido nacionalista sob liderança de Chiang Kai Chek, antes que este se refugiasse à Taiwan e a China fosse definitivamente ocupada por Mao. Fugira com a esposa para o Brasil com o que restou do espólio comunista. De sua esposa, minha memória se mantém muito viva.


Era uma senhora muito refinada nos gestos e na economia de palavras. O que chamava a minha atenção infantil eram seus pezinhos minúsculos, quase do tamanho dos meus de então. Só depois de adulta eu soubera que se tratava de membro da alta corte pré-revolucionária. Seus pezinhos denunciavam a secular tradição das mulheres nobres. Quanto menores os pés, mais alta a castidade física - sinônimo de graça e beleza até o início do século 20. Certamente proviera de ambiente cujo cotidiano era circundado por criados até para se deslocar no interno doméstico. Sabe-se lá que odisséia tenha passado o casal para fugir das garras ostensivas de Mao, até chegar a outro lado do planeta.


Como no ditado popular, os lobos perdem os pelos mas não o vício. A remanescente aristocrata não renunciava aos pequenos luxos naquela pacata zona rural paulista dos anos 60. Não sabia cozinhar ou cumprir as menores tarefas domésticas. Me lembro, com muita lucidez, de sua imponente cristaleira, cuja estrutura de madeira era minuciosamente entalhada em alto relevo com dragões e motivos floreais, que remetiam à pompa da corte imperial que conhecemos nos filmes. Dentro dela, inúmeras porcelanas, cuja milimétrica espessura da refinada manufatura chinesa traduzia, mesmo para uma criança como eu, a condição social em que vivera até a chegada ao Brasil.


Numa das inúmeras visitas que meu pai fizera ao amigo - sempre comigo a tira-colo - o velho chinês retirou do imponente baú de couro, seu velho uniforme militar, que hoje faria estremecer de fúria qualquer animalista adormecido. Mostrou, com um certo orgulho, um velho sobretudo militar de lã, enquanto "conversavam" em ideogramas rabiscados sobre um caderno. Vestira, paradoxalmente, na guerra russo-japonesa na Manchúria, para se proteger do frio siberiano ao lado de russos, contra os japoneses.

O sobretudo, longo até o tornozelo para os seus um metro e oitenta ou mais de altura, mereceria um capítulo à parte. Seu forro era inteiramente confeccionado com caudas de tigre - sabe-se lá quantos tigres foram sacrificados - para suportar a temperatura siberiana das campanhas militares.


Me lembro, com grande lucidez, que cheguei a tocar o forro daquela vestimenta com as mãos trêmulas, num misto de incredulidade e compaixão. Naturalmente o sobretudo era reservado apenas aos militares de alta hierarquia como ele. Tal experiência me leva a crer, com grande convicção, de que aquela fora a minha primeira e última rara ocasião em que tocara várias caudas de tigres, sem o risco de ser inteiramente engolida por eles. E sob o calor de um país tropical, tão distante no tempo e no espaço daquele estranho contexto.


Mas o que ficou na minha memória foi a amizade entre ele e meu pai. Além da diferença etária que os distanciava, havia ainda o muro linguístico-verbal e o embaraçoso paradoxo de suas nacionalidades: as razões ideológicas de suas respectivas nações no conflito, culminadas em guerras. A amizade havia extrapolado a semântica destas razões e imposto a distinção dos ideiais de uma nação do individual.

O velho chinês falecera quando eu era ainda uma adolescente. Meu pai faleceu em 1996, com 80 anos de idade, num quarto abarrotado de livros, todos já empoeirados e intactos, à beira de sua morte. Morrera com ideais pacifistas que sempre tivera, ainda que ele mesmo fosse filho de um militar japonês, que combatera na Manchúria contra os chineses.





terça-feira, 10 de novembro de 2009

Médioman



Vivo num prédio de cinco andares, em cuja ala divido o espaço, entre outros, com duas moradoras cantoras de ópera. A do quarto andar é cantora profissional do teatro Scala de Milão, sempre em turnê pelo mundo - e agradeço as forças divinas por isso. A outra, minha vizinha direta de paredes, que ama a música lírica por prazer, já que se trata de uma engenheira que vive só, com seus quase 50 anos de idade. Esta, além do canto, há como hobby o teclado - eletrônico suponho, e não piano - além do que parece praticar melhor, a flauta. Confesso, em certos horários prefiro esta última.

Deixo claro que aprecio a música lírica. Aliás, eclética como sou, gosto um pouco de tudo, desde que o canto não estoure meus tímpanos às 7 da manhã ou depois da meia-noite, como esta vizinha direta costuma fazer. Para tudo há um horário e volumes justos, convenhamos; ainda que eu viva num país onde poucos se importam com a poluição sonora. Aquí se fala, discute, buzina, rí e se diverte em altos decibéis.

Sou da legião dos silenciosos. Tenho o meu velho fone de ouvido para a TV por princípio, que serve também para ouvir uma música. Com o fone ouço nitidamente até o murmurar do vizinho do personagem quase mudo de um Bergman (!) e ainda, não incomodo ninguém. Mas isso é apenas uma escolha minha, num mundo onde cada um grita pelos seus direitos de ir e vir, ouvir e falar.

Não me passa pela cabeça reclamar desta vizinha. Eu apenas procuro tossir mais forte para que ela perceba a minha presença deste lado da parede. Esperando, quem sabe, que desperte o seu bom senso para que diminua o volume. Se sabe, vivemos numa sociedade em que tudo é classificado em bom gosto e mau gosto. Não sei quem os determina, mas assim os são, de fato. Se eu pusesse um Reginaldo Rossi a alto volume, seria uma afronta aos vizinhos e eu seria apedrejada. Se se trata de música 'culta' no mesmo volume, tudo se encerra e se absolve em nome do 'bom gosto'. Por que se sabe, o bom gosto é elitista, e está acima de tudo.

Falei disso tudo porque faço um paralelo com a estudante da Uniban. Um parâmetro forçado, quem sabe, já que se trata de diferença visiva e outra, sonora. Aquele vestido rosa-choque é horrível de fato. Mas me intriga saber se ocorreria o vandalismo se o mesmo vestido fosse assinado por Dolce Gabbana com a etiqueta à mostra. Ou, se ela fosse uma famosa personagem televisiva que o tenha adquirido na Daslu. Quem determina o bom e o mau gosto? O mau gosto é suficiente para merecer pedradas? Ou somos forçados a ser classistas para não sermos marginalizados? Hipocrisia, claro...


domingo, 8 de novembro de 2009

Chove chuva



Coisa de domingo chuvoso, sob 5 graus de temperatura, trancada em casa. E, enquanto não chega a tirânica segunda-feira, como não ouvir isso?
Mas cá entre nós, como Morrissey envelheceu. E novamente, cá entre nós, eu também. E lá se vai uma garrafa inteira de um Barbera, enquanto ouço coisas de outros tempos.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Hipocrisia Institucional


Não assisto a tevê se não aquela que eu pago. Todo o resto, os canais abertos, requer um estômago de ferro para assisti-los. São uma eficiente máquina de propaganda ideológica do governo Berlusconi, dono de tudo aquí, cujos apresentadores de programas medíocres são armados de invejável habilidade para institucionalizar a hipocrisia. E desta, articulam para a Verdade oficial incontestável.

Ontem, cometí o erro de fazer um zappping nestes canais berlusconianos. E está aí o poder de persuasão. Caí na besteira de parar num programa de Inquisição midiática camuflado em 'debate político'. Inquisidor porque o 'réu' era um político de oposição deste governo, Piero Marrazzo, flagrado duas semanas atrás em traje sumário com uma travestí brasileira. O caso de Marrazzo, até o momento da investigação, é mais uma vítima de um escândalo armado pela mídia, policiais corruptos, políticos e empresários ligados ao governo, incluindo aí barganha do vídeo de flagrante entre sí.

Mas a hipocrisia do programa, visto por milhões de italianos, o transformou num "réu" com a despudorada intenção de rebaixá-lo moralmente apenas pela sua orientação sexual, a de preferir uma travestí como companhia. Uma condenação de Marrazzo foi conveniente para absolver retroativamente Berlusconi, pelas suas 'festinhas sexuais' que recentemente ocuparam as páginas internacionais.
O debate escamoteava a defesa do primeiro-ministro com uma pauta do tipo "o pivô era ao menos uma mulher, e não uma indecente travestí, ainda mais clandestina". O réu, ausente no programa, foi jogado em meio à grande fogueira e acusado por um "crime muito mais grave" e portanto, a oposição não teria direito de inferir sobre a nota debilidade de Berlusconi por lolitas.

Para botar mais lenha na fogueira, a deputada Alessandra Mussolini, neta do ditador e líder de um partido de extrema direita italiana disparou: "Se meu marido me traísse com prostituta ou com outra mulher, posso até perdoá-lo, mas com uma travestí, jamais!" E sobrepondo sua voz a altos decibéis para abafar a única representante transsexual no programa, ainda ironizou com desprezo: "Tenho orgulho de ser mulher, porque só nós podemos ser progenitoras da humanidade, e vocês nunca poderão sê-las!".

Suponho que ela e todos os aduladores de Berlusconi ainda terão filhos e netos nesta vida. Ou seus descendentes estarão fadados à orientação apenas heterossexual? Se a televisão já é por sí um gerador de trash, que outro adjetivo poderia atribuir à televisão italiana? Até o momento não encontrei. Tenho apenas medo dela. Muito medo pela integridade dos bons italianos. Meno male, eles ainda resistem.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Praga e a praga

Músicos de rua num alegre rítmo de gypsy-jazz.

Esperava encontrar uma praga de baratas kafkianas como eu, caminhando pelas ruas de Praga. Mas diante da sua beleza, do inseto retornei ao estado de gente, e passeei estes últimos dias me sentindo um pouco mais humana.

Há tantos zilhões de sites, blogs e artigos de viagens sobre Praga na rede que decidí não escrever nada sobre ela. O fato de eu estar feliz, longe de casa, já valeu a viagem. Distanciar-se das nossas referências faz sempre bem à alma, não importa o destino.

Casa tcheca de Mozart, onde ele se sentia mais em casa que em Viena.

Praça Staromestské Námestí. Ao lado, relógio que informa a posição das estrelas, dos planetas e da hora.
De volta à casa, estou sofrendo a terceira metamorfose. Desta vez, me sinto uma joaninha. Pequena, mas feliz.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Pantanal e a cabeça de boi


Numa dessas incursões pelos sites gastronômicos, encontrei a receita de sopa de piranha, cujo irresistível sabor me evocou a primeira viagem ao Pantanal. Bem lá no início dos anos 80, quando ainda era estudante. Viagem em três, com duas pimpantes amigas mochileiras - hoje comadres com dores lombares - , dispostas a muitas renúncias por uma aventura. Com exceção do ar-condicionado e bons cremes para o sol. Para elas, e não para mim.

A viagem iniciou com a eletrizante expectativa pelo famigerado "Trem da Morte", com intenção de tocar a porta de Bolívia. Só não avançaríamos o além-fronteira porque a contenção do nosso bolso impedia. A lenta travessia ferroviária pelo Pantanal correu como previsto: muita emoção com tuiuiús, jacarés e tucanos vivos, coisas que só a National Geographic sabe descrever.

Mas para quem deixara São Paulo e a excitação de sua periferia(de paura) para trás, os passageiros do 'Trem da Morte' sugeriam tudo, menos a morte. Talvez esperássemos mais lumpens, forasteiros e até criminosos naqueles vagões, que alimentassem o nosso fértil imaginário.

Contudo, a nossa acomodação em Corumbá se revelou muito mais palpitante que o suposto risco de vida naquele percurso ferroviário. Passeios nos rios, fazendas a explorar, dolce far niente parasitário e muito leite ordenhado na hora. Leite com conhaque logo de manhã, para minutos depois, nos fazer correr atrás da primeira vegetação fechada.

E, claro, um churrasco inesquecível na casa dos amigos de Corumbá. Um boi assado inteiro, espetado numa tora. Nada comparado ao que os paulistas imaginavam ser um churrasco. Os amigos matogrossenses nos foram extremamente gentis; e para honrar a tradição do bom anfitrião, nos ofereceram o que há de mais primoroso na tradição gastronômica local. A cabeça inteira daquele boi assada. Com tudo em cima. Couro, pelos malhados, olhos, dentes e supostas babas de ervas regurgitadas pelo ruminante. Sabor divino que só os vaqueiros sabem apreciá-lo, de fato.

Sua carne é deliciosa, - sobretudo aquela das maçãs do rosto - ainda que permaneça na boca aquele retrogosto de pasto e estrume de vaca. Minhas amigas - com inútil tentativa de escamotear sobrancelhas franzidas - também souberam honrar a boa educação perante os anfitriões, mas com muitos goles de cerveja para mandar as garfadas goela abaixo. Elas não deixaram a peteca cair, e cheguei a entrever na penumbra brilhantes gotas de lágrimas caírem do canto de seus olhos, enquanto mastigavam os nacos de carne. Era o ápice de uma felicidade forçada.

Com muita nostalgia, ainda nos lembramos da viagem quando nos encontramos. Será a nossa idade, mas centralizamos sempre a conversa nos sabores que ficaram daquela aventura, em vez do trem, que se revelou bastante ordinário. Dos peixes fritos que meninos de vilarejos vinham nos vender da janela do trem na parada de Aquidauana, da sopa de piranha que tomamos à beira do rio Paraguai e de águas de coco necessárias para o escaldante mês de fevereiro.

Muitos anos depois, retornei ao Pantanal. Mas a emoção era empacotada, com todos os serviços incluídos. Nada que pudesse me emocionar como aquele Pantanal que descobríamos por nossa conta.
* À Anninha, cuja existência não faz o tempo passar.


domingo, 25 de outubro de 2009

Churrasco Virtual


Não resistí à tentação de publicá-la. Já devo ter clicado esta foto ao menos 300 vezes. Depois, quando não contenho mais a salivação, eu a guardo desconsolada, de volta ao meu arquivo de fotos.

Esta megachurrascada num sítio - a convite de uma amiga quatro anos atrás - , emudeceu o único italiano presente entre os devoradores. Diante da obra divina, ficou alguns segundos alí, imobilizado, teletransportado para uma dimensão celestial. Extasiado, cobriu o rosto com as duas mãos, para murmurar apenas "mamma mia... , mamma mia..., mamma mia.... Naquela 'mamma mia' estava subentendida a expressão universal para o orgasmo múltiplo.


À espera de uma próxima oportunidade, nos consolamos com este minguado 'franguinho à passarinho' domingueiro. Como é duro retornar ao purgatório depois de uma subida ao paraíso.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Hopper, o observador do ordinário

Pôr-do-sol em Cape Cod, de 1934

A chuva e o frio tentaram me impedir, mas não havia ocasião melhor que ontem para ir à mostra de Edward Hopper. Numa quinta, evita-se visitas guiadas de estudantes. Com a chuva, menos visitantes casuais. E menos incivilizados que se põem à nossa frente para monopolizar a apreciação dos quadros.


Sol da Manhã, de 1952
Sou incapaz de fazer uma resenha, mesmo descritiva. Nem pensar, se a presunção se referir à arte. Tenho profunda consciência da limitação dos meus recursos. Tenho um pesado livrão de Hopper, da Taschen, com biografia e obras completas que estou sempre a namorar em casa. Mas ele apenas me instrui, pois a liberdade de interpretá-lo diante de uma obra viva é sempre individual. Pessoalmente, mais que a interpretação, me basta a sensação, e quase sempre ela morre comigo. Nada feito. Para uma resenha decente, - e serão milhares por aí - há o Google grátis, à disposição de todos.

Conhecí, em primeira pessoa, o vazio que a depressão provoca à alma humana. Talvez por isso, foi inevitável não me reconhecer nas representações de Hopper. O mal da desolação, melancolia e sensação de estagnação da vida já lhe era contemporâneo na Nova York das primeiras décadas. Ele apenas as retratou com minuciosa observação a iluminação daquele panorama ordinário.

Se sabe, suas paisagens rurais e urbanas são sempre desertas, privas de figura humana. Sua importância é secundária e a não-expressão desta presença a cancela de algum significado na obra. Uma ambientação quase noir, como escreve o próprio curador da mostra. Como a figura feminina sentada sobre a varanda ou aquela sentada sobre o leito, de frente à janela, ambas que observam o nada. E há a casa de veraneio, estação ferroviária ou o posto de gasolina, todos desertos. O que essencialmente inquieta o observador é o vazio.


Célebre Aves da Noite (ou Notívagos), de 1942, ausente à mostra milanesa.
Infelizmente, a mostra de Milão não trouxe as obras mais célebres como a Aves da Noite (ou Notívagos), Gasolina e a Casa na Ferrovia (a que inspirou Hitchcock no Psicose), mas apenas seus numerosos rascunhos. Mas nada que desfalcasse a satisfação. Outras 170 obras me fizeram imergir completamente, por inteira manhã, no estranho mundo da incomunicabilidade.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Revista Seleções e a infância

Norman Rockwell

A pouco mais de cem metros da minha casa fica o prédio onde até dezembro de 2007 sediava a editora italiana da revista Reader's Digest, a Selezione. A versão italiana antecipou de dois anos a bancarrota que a matriz americana está para anunciar, depois de 77 anos de história. Está em vermelho astronômico de 2,2 bilhões de dólares. Apenas no mercado americano.

Da janela do meu quarto posso avistar o prédio, hoje ocupado por outras empresas. E ao abri-la, é inevitável não me recordar de sua edição brasileira e da minha infância. Infância cujo período era a cavalo entre o final dos anos 60 a meados de 70. Sou caçula de muitas irmãs, de cujas leituras incluía a revista Seleções. A pequena revista se movia pela casa, ora no banheiro, ora no sofá, para quem quisesse folheá-la.

Tratando-se de tradução americana, a revista era de fato um compêndio condensado da doutrina americana no combate à ameaça soviética. Com acesas propagandas anti-comunistas, - como a seção "Conversas na Caserna" - , razão porque a revista era certamente classificada como 'reacionária' por aqueles brasileiros que combatiam a ditadura militar de então.

Longe de ser reacionárias, minhas irmãs eram assíduas leitoras de suas dietas, biografias de personagens célebres, sinopses de alguma nova descoberta científica ou resumo de um romance. Mas, sobretudo, devoravam os imperdíveis aforismos nos rodapés de suas páginas. Quase sempre muito moralistas e patrióticos, que enalteciam o modo de vida americano. Com seus cortadores de grama, halloweens, disciplinas militares e coisas que eu nunca os havia ouvido falar.

Tendo apenas 11 ou 12 anos de idade, eu me concentrava mais nos rodapés, cada vez que elas chegavam da banca com a nova edição. Eu corria para ler primeiro a "Pausa para o Café", seguida de aforismos e piadas.

Foi também nesta revista que me encantei, pela primeira vez, pelas pinturas de Norman Rockwell, quem ainda o associo àquela revista. Minha primeira 'paixonite' por algum pintor, talvez. Mas colecionava também minhas leituras infantis, a revista Recreio e os fascículos da enciclopédia Disney, enquanto me entupia de dadinhos Pingo de Leite naquele velho sofá vermelho.

Só me distanciei da revista Seleções por volta de 73 ou 74 - sempre por tabela - , quando minhas irmãs já haviam diversificado suas leituras entre as revistas Planeta e a musical Pop, para disperdê-la completamente nos anos sucessivos.

Afinal, a tevê em cores estava para chegar ao nosso lar. Mas não sem antes ter comprado aquela folha plástica em três faixas de cores - azul, vermelho e verde, se não me engano - que colávamos no aparelho para fingir que já dispúnhamos de cor. Estávamos sob o governo Médici, e eu nem sabia o que fosse uma ditadura militar.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Roda de botocadas


Não. Nenhum batuque.

É que passei ontem pelo quadrilátero milanês de luxo e moda, a zona Montenapoleone, onde se observa o maior número de passantes botocadas e siliconadas por metro quadrado do país. Não, nada contra o botox. Ao contrário, o que dizer da santa invenção? A toxina parece ser benéfica na cura de enxaqueca, de próstata e até fez um australiano caminhar após sua aplicação!

Sou apenas um pouco reticente com os lábios exageradamente 'intumescidos' - taí um adjetivo que só leio em contos eróticos - na escolha extrapolada de algumas mulheres como as que ví ontem. Lábios muito 'capientes', para estar no tema. A lambusagem dos lábios - com o batom, naturalmente - neste bairro de boutiques não se restringe apenas às clientes e passantes. Contaminadas pela vaidade, muitas balconistas que lá trabalham não medem esforços para igualar-se a elas. Sabe-se lá com quanto sacrifício. Aquí ainda não chegou a cirurgia estética paga à prestação.

Lá, é fácil esbarrar-se com exuberantes donatellaversaces, quase todas em idades entre 40 e 50 anos. Mesmo no inverno, estão sempre 'alaranjadas' pelo bronzeado de lâmpadas. Ao passar por uma roda de mulheres, ouví conversas com pronúncias tão sibilares que suas palavras se tornavam ininteligíveis, tamanha dificuldade com os lábios recém-cicatrizados. Deixei rapidamente aquele perene red-carpet para trás, assustada também com a minha maldade.

De volta à realidade brutal do sacolejo do metrô, comecei a pensar, seriamente. Está na hora de eu largar aqueles cremes baratos, comprados em supermercados. Acho que chegou a hora de eu investir em creminhos um pouco mais custosos.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Aristocracia

Domingo de comes-e-bebes num magnífico casarão de veraneio de um conde, cuja linhagem da família herede remonta ao século 12.

Ao conhecer suas dependências internas, compreendemos a opulência com que os nobres gozavam na Idade Média. Será este casarão, resultado de uma das tantas indulgências concedidas pela Igreja, com títulos nobiliares em troca de benefícios financeiros que tanto enriqueceram o Vaticano?

Preferí me abster de tantas perguntas inúteis, afinal era uma festa. Estes panoramas serviram apenas de moldura à festa de casamento de uma amiga, ontem.
Uma cara amiga que escolheu este lugar para um singelo 'sim'. E elevou de um ponto percentual na escarsa estatística de casamentos no país.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Luzia e seus ídolos


Num desses acidentes de percurso no You Tube, clicando aleatoriamente aquí e alí, me esbarrei dias atrás com um vídeo de Reginaldo Rossi. Aquele mesmo, o do "garçon", o exuberante cantor de música popular, que emanava sexo por todos os poros e por cima de suas calças de Tergal. O meu sorriso se iluminou, claro.

Passei meus finais de adolescência ouvindo programas populares de rádios AM. À exaustão. Tudo por conta de Luzia, a doce criatura que muito ajudou minha mãe e nas nossas tarefas domésticas. Ela nunca começava o dia sem sintonizar seu radinho azul de pilha, que a acompanhava por toda a casa. O radinho só emudecia mesmo era na hora do almoço, para nos dar um pouco de fôlego com o noticiário de tevê.

Eu vivia a minha fase de mineirismo trancafiada no quarto, mas o som externo de Luzia não me concedia tréguas. Seus robertoleais e gretchens prevaleciam sobre meus lôborges e venturinis. Mesmo sob todos os protestos, as tardes eram um monopólio de Luzia.

Após o almoço iniciciava o imperdível programa do 'lindão' Eli Corrêa. Aquele que saudava os ouvintes com o inconfundível refrão "Ooooooooooi, geeeeeeeentiiiiii", seguido de algum jingle. O seu público fiel não tinha ouvidos para os comerciais de xarope, palhinha de aço ou de sabão. Queria logo que o locutor rodasse suas dedicações com odairjosés e amadobatistas, os hits do momento.

Anos mais tarde, ao ingressar na faculdade, me ví realizando a fantasia que inundava as tardes de Luzia. Com frequência, esbarrava em alguns de seus ídolos nos elevadores da faculdade, em cujo edifício abrigava também o auditório da TV Gazeta. Cantores que já chegavam vestidos à caráter, com seus sapatos de plataforma e correntes de ouro, para ganhar alguns minutos de visibilidade fora do limitado ambiente de AMs. Também cantores anônimos, que dalí a pouco, seriam esquecidos nos palcos de churrascarias de estradas.

Os olhos de Luzia brilhavam a cada promessa minha, que acabei por não cumpri-la. A de acompanhá-la ao auditório daquele programa popular. É que logo em seguida, ela nos deixava para retornar à zona rural, onde viviam seus pais. Por culpa da gravidez de um malandro que não a merecia.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

O bom milanês


Aprecio muito o verdadeiro cidadão milanês, com sua inata discrição e sobriedade. Eles são poucos em Milão. Avesso a frugalidades e rodeios de palavras, a sua aparente indiferença com vizinhos é muitas vezes confundida com esnobismo, mas são os aspectos desse italiano profano que mais me faz sentir à vontade.

É verdade que a mentalidade milanesa nem sempre agrade aos italianos de outras regiões, ao fulminá-la como 'fria' ou 'individualista', para engrossar a lista dos lugares-comuns. São certamente atribuições superficiais sem nenhum ranço, que todos os centros urbanos, industriais e financeiros recebem em comum, cada qual nos seus confins. Eu as corrijo como pragmática e sensata, que preza a sua individualidade sem descer no individualismo. Um bom milanês, em poucas palavras, não se vale de retóricas e nem se esforça a recolher belos adjetivos para sí.

Pessoalmente o meu critério de simpatia nunca se baseou na alegria ou no sorriso de um povo. Prefiro a direta sinceridade e disciplina do cumprimento de palavras a profusão de alegria e eloquência evasiva. Abraços efusivos e risadas em altos decibéis conquistam apenas nossas impressões imediatas, o que nem sempre se traduzem em respeito. Suspeito sempre dos superlativos.

Estendo esta mesma impressão dos milaneses aos japoneses de Tóquio, que por razões profissionais mantenho maior contato que das demais cidades japonesas. Não porque a cidade seja mais rica, afluente e cosmopolita do Japão. Me refiro ao velho e bom japonês dos tradicionais bairros de Tóquio, que por razões que só culturas antigas são capazes de manter naquele vórtice humano, ainda conserva com sobriedade os bons princípios de usos e costumes nas relações humanas. Tudo isso com o devido respeito e distância.

Financeiramente, meus clientes de Tóquio nunca renderam alguma vantagem significativa para o meu bolso. Com algumas exceções, quase todas as transações comerciais com eles foram bastante modestas, de dimensão humana, suficientes para eu pagar minhas contas e impostos. Em contrapartida, tive muitas compensações com eles. A certeza da relação duradoura e contínua, baseada na confiança recíproca de palavras. E nem sempre ditas. Ao longo dos anos, muitos deles mudaram de setor devido à crise, mas ainda mantemos relações cordiais como se nada tivesse mudado.

Será uma casualidade, mas não obtive a mesma satisfação com alguns profissionais de Osaka, cidade igualmente grande, cuja cultura se distingue dos demais japoneses pela grande desenvoltura e uma escancarada alegria. A antítese de Tóquio, em tantos aspectos. Com eles concluí vários furos na água, após entusiasmantes trocas de cartões de visita, muitos souvenirs de presente e promessas em pompa magna de grandes negócios juntos. Palavras. Simplesmente palavras.

Falei disso tudo apenas porque levei a enésima paulada na cabeça ontem, de um novo fornecedor de uma profunda região italiana, com um dos índices mais elevados de desemprego do país, conhecida também pela sua alegria e de "gente che sa vivere". No trabalho, pouco me importa a alegria; me interessa é o peso da responsabilidade.

Bem que eu havia desconfiado da excessiva simpatia e falação durante os ricos jantares antes do contrato. Iniciou com delongas na entrega de pedidos, desculpas esfarrapadas e despudoradas atribuições de culpa a terceiros. Até o cancelamento aleatório do pedido, sem nenhum aviso prévio. Mas não um pedido de desculpas. O meu cliente japonês ficará desfalcado da coleção de calçados este ano.

Seis meses de promessas para acabar com um furo na água. Viver com alegria sim. Viver de alegria, só os humoristas.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Boteco privée da Luma - Menu 4

Retomei o bom astral.

Voltei radiante de uma visita cardiológica ontem. Se sabe, a esta altura da segunda idade, o receio de que o médico me corte o vinho e a comidinha de que tanto gosto é atroz, de tirar o sono. A abnegação na gula deve ser um daqueles casos mais trágicos que um ser possa suportar. Enfim, após uma enervante espera, o resultado diz que o meu coração está tudo em ordem, e voltei feliz para sempre.

Para festejar, reabrí o meu boteco privée. Claro, é uma traição imperdoável com o meu cardiologista, preparando logo estes camarões fritinhos, provenientes do Pacífico, das águas tailandesas. Versão bem mais barata que os camarões do mar saqueado, explorado e saturado do Mediterrâneo.


E tem estas anchovetas cruas, presentes ao menos a cada quinzena sobre a minha mesa, temperadas apenas com sal, limão siciliano, pimenta-do-reino e azeite extra-virgem. E estas não têm contra-indicações. A prova disso é que os seus maiores devoradores, na região de Puglia - bem alí no salto da bota - , vivem com muita saúde.

Confesso, renuncio ao sashimi e wasabi de qualquer peixe por estas anchovetas cruas, cujo sabor do mar nos enche de alegria por todo o céu da boca, até chegar ao nosso cérebro. E tudo acompanhado por um vinho branco comum da região de Marche; nada de especial, mas de boa qualidade e com a garantia de um IGT, - Indicação Geográfica Típica. O vinho me custou apenas € 2,15 a garrafa.

Com a garantia do resultado médico, sei que o meu boteco privado seguirá em frente, e por enquanto, não se prevê nenhum risco de falência.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Desperdício


Estava para postar sobre essa 'comidinha do bem', da foto abaixo, preparada no último domingo com a reciclagem de todas as sobras da noite anterior, quando coincidentemente me deparei com dois artigos publicados hoje, relacionados ao tema.



O primeiro discute o desperdício de comida no mundo, no fórum da BBC Brasil. O outro, publicado no jornal italiano La Repubblica, cita o caso de uma pequena cidade australiana de Bundanoon, com apenas 2 mil habitantes, que decretou a proibição da venda de água mineral na cidade. Os números pelos quais a cidade se baseou para a drástica decisão revelam a incoerência da devastadora indústria de consumo e o círculo vicioso no qual todos somos cúmplices, ao repetir a máxima popular "minha contribuição não faz nenhuma diferença".

Segundo o artigo, é necessário 81 milhões de litros de petróleo e 600 bilhões de litros de água para produzir 154 bilhões de garrafas plásticas consumidas hoje. Um paradoxo, pois 1 litro de agua mineral que compramos na esquina, necessitou de outros 4 litros de água apenas para produzir o seu recipiente. Sem falar da crescente expansão e lucros das empresas engarrafadoras, que nos impõem este bem natural e vital como fosse um 'produto' ou até uma grife.

Ao diagnosticar problemas renais há cerca de 8 anos, me incentivei a cortar o consumo de água engarrafada pelo de torneira, como solução mais racional e consciente para a terapia. Eu precisava tomar ao menos 2 litros de água por dia. O tratamento e distribuição da água encanada de Milão são frequentemente certificados como excelentes - iguais ou até superiores que muitas marcas difundidas - , razão a mais para que eu me liberasse de vez do remorso com a multiplicação de garrafas no meu lixo. Era um non-sense suar sete camisas para buscar minhas provisões no supermercado da esquina por um bem que possuo em casa e enriquecer as empresas de PETs e engarrafadoras. E ainda, ter que descer continuamente com sacos gigantescos de lixo para o cestão diferenciado do condomínio.

O artigo me estimulou a recalcular minha pequena mudança doméstica. Nestes anos de terapias renais, deixei - surpreendentemente - de produzir de 3 a 5 mil litros plásticos em casa. E num cálculo inverso, a indústria produtora de Pets economizou 20 mil litros de água para produzir o meu lixo. Quem diz que o nosso microcosmo não faça o macro?

Bem, sobre a comidinha da foto acima deixo para a próxima...

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Berlim Oriental III



Já escreví precedentemente aquí sobre a minha rápida experiência em Berlim Oriental, antes da queda do muro, mas só agora, quando o fato histórico fará 20 anos em novembro próximo, percebo a crueldade da passagem do tempo. O tempo sobre os ombros é tirano, e nos tenta subtrair energia e vitalidade, sem remorsos. Mas foi naquela viagem que aprendí um pouco mais da vida, para alcançar a idade realmente adulta.

Quando ainda era uma mera universitária no Brasil - combinada a todos os excessos - , achava que as nossas convicções fossem imunes ao tempo. Mas só ele - sempre ele - soube me ensinar que as convicções de ontem podem ser tolices de hoje. Me formei e continuei a acreditar em papos de botecos por muito tempo, até eu conhecer ambos os lados do muro. Que ironia, me revelei como aquela que prefere a ala dos que querem o conforto. No seu vasto entender.

Quando visitei Berlim Oriental, com um visto de apenas 24 horas - era o máximo de tempo que os socialistas concediam - , ainda arrastava a crença de que a divisão de bens fosse o ideal da humanidade, mesmo observando tanta melancolia e tristeza nos olhares dos próprios berlinenses orientais.

Não é necessário que hoje, ao compreender a ilimitada insaciabilidade do homem, os neoliberais me dêem alguma lição de política econômica. Compreendí já naquela viagem, com grande atraso, que a igualdade não existe. E nem o desejam. Enquanto o homem for aquele bicho que nós estamos carecas de saber quem seja.

domingo, 20 de setembro de 2009

Sua Excelência, o Queijo


Queijos. Muitos queijos. A bem da verdade, um mar de queijos. De todos os tipos e proveniências. Uma covardia para o meu estômago, indignado com a própria capiência.

Nosso mergulho nas obras-primas criadas por aquelas doces criaturas - vacas, ovelhas e cabras - , ocorreu ontem, na pequena cidade de Bra, situada sobre uma das inúmeras colinas circundadas por vinhedos, que caracterizam a região de Piemonte. Trata-se da feira bienal Cheese 2009, organizada pela Fundação Slow-Food italiana, que este ano reuniu 50 stands e 186 bancas de várias regiões da Itália e do mundo. E o melhor, com direito a degustação dos produtos e participação em vários eventos paralelos, como o de enologia, gastronomia, música e muitas, muitas palestras.


Por todo o dia percorremos, stand por stand, com o 'ingrato' trabalho de prová-los antes de decidir - entre centenas de variedades -, o que traríamos para casa. Oh, quanto foi 'penoso' ter que saborear brousse francês de cabra e pulltost norueguês; ou decidir entre cheddar 18 meses irlandês e o pecorino infossato, queijo de saco enterrado sob frias terras de Abruzzo. Não bastasse a dura tarefa, tive que entremeá-los com goles de barolo e nebbiolo piemonteses, que chateação...

Ricota búlgara de cabra , cuja tradição era processada e maturada no
estômago do mesmo animal, banida hoje pelas novas leis sanitárias.

O saldo deste passeio? Nove tipos de queijos na sacola para retomar os 200 quilômetros de estrada para a casa. Com a leve impressão de que 200 pessoas haviam tirado os sapatos dentro daquele carro.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

A fila anda

Costumo medir os sinais dos tempos no calhamaço de panfletos que entope a minha caixa de correspondências.

Empréstimos sem fiador "a juro inócuo"; encanadores de emergência "sem cobrança de taxa de saída"; conserto de dentaduras "em apenas 24 horas"; excursões gratuitas em ônibus de luxo para fábrica de móveis X "sem compromisso de compra" (mas parada e almoço obrigatórios no Restaurante Y) e outras apelações afora.

O barômetro é bastante rudimentar, é verdade, sem nenhum embasamento científico. Mas àqueles cujos índices do governo ou de agências econômicas parecem apenas números estatísticos dirigidos aos banqueiros e grandes empresas, estes panfletos podem servir de referência ao estado real da crise. Ao menos para nós, o 'povinho'.

Numa economia tradicional e refratária como a italiana, recentemente saída dos crivos estatais e baseada em pequenas empresas - quase sempre de gestão familiar - , os novos serviços fazem, sim, grande diferença. O da percepção de quanto estamos imersos na crise. E isso fere até a identidade cultural italiana, atropelada pela repentina liberalização de mercado e concorrência, e pela necessidade de revisão dos orgulhos nacionais.

Quando me estabelecí neste país, há mais de 20 anos, era quase impensável que uma pizzaria fizesse entregas a domicílio. "Pizzas são boas sobre a mesa de uma pizzaria", dizia a grande maioria defensora da boa família cristã-tradicional-ortodoxa. Como adepta do 'slow-food', concordo plenamente com a tal filosofia, se isso não transformasse o mercado italiano num feudo de província em contraste com o resto do mundo.

Me lembro, ainda hoje, - e foi no final dos anos 80 - que o meu aparelho de fax se emperrou justamente num caso de emergência e tive que recorrer ao serviço externo para enviar um documento a Miami. O documento me fora enviado inicialmente do Japão, para que eu posteriormente repassasse a Miami, para completar uma transação comercial.

Percorrí papelarias e agências telefônicas, até descobrir que somente o Correio italiano - mas então apenas a agência- matriz da cidade - fazia o serviço de envio de faxes. Dentre 10 guichês, apenas um funcionava. E aquele único funcionário público-bufão ainda se lamentou com a minha presença, pois a minha petulância o distraiu da leitura do jornal " La Gazzeta dello Sport". Irritado por ter que me 'servir', ainda tentou me intimidar em altos decibéis para que eu retornasse mais tarde, porque "agora estou ocupado". Ao final da discussão, o funcionário ainda teve o caradurismo de afirmar que naquela agência 'não enviava fax a Miami' (!), por razões técnicas!

Mas esta é apenas lembrança de uma Itália que renunciava à herança craxiana pelo berlusconismo, não fosse o pequeno intervalo-escândalo das operações 'mãos limpas' do bom magistrado italiano. Não fosse a internet hoje, é possível que eu me encontrasse em Cariri d'Oeste, trabalhando em minha horta, longe do estresse que comporta uma transação comercial.

De volta aos panfletos que inundam a minha caixa de correspondências, noto que hoje, a culpa aos bodes expiatórios de turno - "estes chineses falsificadores" e trabalhadores extracomunitários - já não encontra um interlocutor que o rebata ou compartilhe da mesma opinião, senão na mídia pró-Berlusconi. Encontrar um culpado externo pela crise não cola mais. O bolso dói, e a urgência de trabalhar e concorrer não dá vasão às discussões inúteis. Finalmente eu vejo a fila andar.

* Mas o comércio, bancos e instituições continuam a fechar na hora do almoço...