A viagem iniciou com a eletrizante expectativa pelo famigerado "Trem da Morte", com intenção de tocar a porta de Bolívia. Só não avançaríamos o além-fronteira porque a contenção do nosso bolso impedia. A lenta travessia ferroviária pelo Pantanal correu como previsto: muita emoção com tuiuiús, jacarés e tucanos vivos, coisas que só a National Geographic sabe descrever.
Mas para quem deixara São Paulo e a excitação de sua periferia(de paura) para trás, os passageiros do 'Trem da Morte' sugeriam tudo, menos a morte. Talvez esperássemos mais lumpens, forasteiros e até criminosos naqueles vagões, que alimentassem o nosso fértil imaginário.
Contudo, a nossa acomodação em Corumbá se revelou muito mais palpitante que o suposto risco de vida naquele percurso ferroviário. Passeios nos rios, fazendas a explorar, dolce far niente parasitário e muito leite ordenhado na hora. Leite com conhaque logo de manhã, para minutos depois, nos fazer correr atrás da primeira vegetação fechada.
E, claro, um churrasco inesquecível na casa dos amigos de Corumbá. Um boi assado inteiro, espetado numa tora. Nada comparado ao que os paulistas imaginavam ser um churrasco. Os amigos matogrossenses nos foram extremamente gentis; e para honrar a tradição do bom anfitrião, nos ofereceram o que há de mais primoroso na tradição gastronômica local. A cabeça inteira daquele boi assada. Com tudo em cima. Couro, pelos malhados, olhos, dentes e supostas babas de ervas regurgitadas pelo ruminante. Sabor divino que só os vaqueiros sabem apreciá-lo, de fato.
Sua carne é deliciosa, - sobretudo aquela das maçãs do rosto - ainda que permaneça na boca aquele retrogosto de pasto e estrume de vaca. Minhas amigas - com inútil tentativa de escamotear sobrancelhas franzidas - também souberam honrar a boa educação perante os anfitriões, mas com muitos goles de cerveja para mandar as garfadas goela abaixo. Elas não deixaram a peteca cair, e cheguei a entrever na penumbra brilhantes gotas de lágrimas caírem do canto de seus olhos, enquanto mastigavam os nacos de carne. Era o ápice de uma felicidade forçada.
Com muita nostalgia, ainda nos lembramos da viagem quando nos encontramos. Será a nossa idade, mas centralizamos sempre a conversa nos sabores que ficaram daquela aventura, em vez do trem, que se revelou bastante ordinário. Dos peixes fritos que meninos de vilarejos vinham nos vender da janela do trem na parada de Aquidauana, da sopa de piranha que tomamos à beira do rio Paraguai e de águas de coco necessárias para o escaldante mês de fevereiro.
Muitos anos depois, retornei ao Pantanal. Mas a emoção era empacotada, com todos os serviços incluídos. Nada que pudesse me emocionar como aquele Pantanal que descobríamos por nossa conta.